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Sexta-feira

As imagens não são neutrais. Elas dão-nos sistemas de representação simbólica afectadas pela nossa história e visão do mundo. Em cada linguagem, as descrições não são neutrais. Elas são igualmente afectadas pelas capacidades individuais e os antecedentes do autor. Em muitos contextos, essa subjectividade é uma qualidade que se deve celebrar, tal como celebramos a diversidade de culturas e de pessoas.
A subjectividade torna-se um problema de conhecimento, no entanto, quando não reconhecemos as predisposições que afectam aquilo que percepcionamos e o modo como o comunicamos. A nossa subjectividade tem um impacto na nossa busca de conhecimento e a forma como agimos no mundo. Quando a subjectividade se torna um problema, chamamos a isso de “tendência” (bias). Quando elementos da linguagem são intencionalmente tendenciosos numa tentativa de persuadir o receptor, é necessário estar alerta contra a manipulação que nos pode vender tudo, de um automóvel a uma seita.

Nenhuma descrição pode ser completamente objectiva ou neutral: nós não conseguimos percepcionar todas as coisas, não podemos ser máquinas de gravação neutrais nem mesmo das coisas que captamos com os sentidos, e não conseguimos reproduzir em linguagem todos os detalhes nem mesmo de um só minuto de um evento. Ainda que a selecção inevitável seja um problema de conhecimento, o nosso filtro de subjectividade ajuda-nos de facto a não nos afundarmos nos detalhes. Se fossemos completamente objectivos, poderíamos exprimir inumeráveis observações indiferenciadas, mas nenhum senso daquilo que é “relevante” ou “importante” ou “interessante” – que são juízos de valor. (...)
Quando uma descrição não é um relato mas uma tentativa de persuasão, pode ainda assim ser considerada credível se os argumentos são suportados com boas razões e provas. É importante, no entanto, que se avalie a exposição persuasiva na base das suas justificações em vez de aceitarmos as suas conclusões na base do seu apelo emocional.
Ainda que seja difícil avaliar o rigor de um depoimento quando não se tem acesso independente aos factos, pode certamente ajudar-nos o conhecimento de alguns dos truques da persuasão.

Quero continuar a ler: Eileen Dombrowski: Bias in Representations of the World (em inglês).

Propaganda é um conceito que significava originalmente a promoção de uma qualquer ideia ou evento, mas foi tomando o seu actual sentido pejorativo na sequência do uso extensivo de propaganda sinistra com objectivos de manipulação de opinião pública durante a primeira e segunda grandes guerras mundiais. Não é um fenómeno novo mas tem vindo com o tempo a ganhar novos suportes e formas de expressão que a tornam cada vez mais eficaz e indetectável.
Um dos principais objectivos da propaganda é criar aquilo que se tem vindo a definir como “dissonância cognitiva”. A dissonância cognitiva é o estado de confusão que ocorre quando os factos são distorcidos em meias-verdades, colidindo com o senso comum e subitamente nos convence que 2+2=5. A nossa percepção diz-nos que algo não está certo, no entanto a informação que nos é dada e exposta interage com essa percepção causando a dúvida do receptor. Isto acontece, por exemplo, quando se associam factos não relacionados com o objectivo de criar uma correlação. Um bom exemplo deste fenómeno é o discurso do presidente americano George Bush durante o qual mencionou o Iraque e os ataques do 11 de Setembro na mesma frase. A estreita proximidade destas duas menções é delineada para criar uma correlação na mente dos receptores, mesmo que a realidade seja diferente. Por insinuação, as pessoas aceitam a ideia num nível subconsciente e tornam-na numa possibilidade. Através da repetição, a correlação torna-se um facto sustentado por desinformação. Com o tempo, a realidade é esquecida e a “revisão” torna-se “verdade”. É esse o poder da dissonância cognitiva: rever a história, alterar os factos e tornar a ficção em verdade, e a verdade em traição. Tanto a história como a política contemporânea estão carregadas de exemplos, particularmente observáveis nos períodos que antecedem guerras ou crises mundiais.

A subtileza crescente dos mecanismos de manipulação torna-os cada vez mais bem sucedidos no acesso à emoção do espectador. O apelo à emoção é, de resto, um mecanismo perigoso de interacção com o público uma vez que este deixa de questionar os factos que estão na base da sua opinião (emocional) e das razões que o levam a agir. As técnicas de chantagem emocional são aquelas que mais mobilizam uma população: o medo, a culpa, a humilhação. Neste processo, a repetição dos objectivos continua cada vez com maior intensidade até cessar a resistência, até que a aceitação se torne o caminho do menor esforço. É neste estado de aceitação manifestado dentro da dissonância cognitiva que uma população se torna mais vulnerável à manipulação e à sugestão.
Alguns exemplos recentes têm servido para demonstrar a verdadeira força dos media enquanto máquinas de inquietação. A morte da Princesa Diana foi um dos exemplos mais paradigmáticos de produção de emoção, pelo tom da mensagem, pela sua repetição, pelas imagens e pelos registos noticiosos, muitas vezes com acompanhamento sonoro e imagens de sofrimento e luto. A mobilização da população em torno da sua morte foi exemplar da aderência a um evento global. No entanto, a forma como, no primeiro aniversário da sua morte, a notícia estava praticamente esquecida e é hoje não mais que uma nota de rodapé da história contemporânea, mostra bem a dimensão real do evento e a proporção das reacções que foi capaz de gerar, de uma verdadeira santificação da figura de Diana Spencer.
A força destes mecanismos mediáticos de apelo à emoção pode, de resto, ser usada com diversos fins. Um exemplo nacional foi a campanha de mobilização da opinião pública portuguesa em torno da situação vivida em Timor após o referendo de 1999. A aderência geral da comunicação social e o relato constante da situação vivida no território, em que milícias atacaram indiscriminadamente a população, ameaçando inclusivamente a sede dos observadores das Nações Unidas, provocando a fuga de D. Ximenes Belo para a Austrália e o asilo de Xanana Gusmão na embaixada inglesa em Jacarta, despertou protestos em vários países do mundo exigindo uma intervenção rápida para cessar a violência. Em Portugal, o eco desta campanha mediática provocou as maiores manifestações populares desde o 25 de Abril, com a divulgação em massa de campanhas pró Timor a favor da rápida intervenção das Nações Unidas.
Apesar de eventos completamente diferentes, o processo de apelo à emoção, também neste segundo exemplo, foi semelhante: imagens repetidas de sofrimento com acompanhamento sonoro dramático e um forte apelo emocional foram de igual forma a alavanca à reacção pública que se gerou. Compreenda-se que não estou aqui a pôr em causa a legitimidade dos princípios dessa campanha ou a sua espontaneidade, mas somente a analisar os processos em que o fenómeno se sustentou.

O uso cada vez mais banalizado de um registo emocional por parte especialmente de alguns canais e programas televisivos é também ele gerador de inquietação e fraca lucidez pública. Mas esse registo não é um exclusivo da televisão ou da comunicação social. Na política o uso de discursos crescentemente gritantes, emotivos ou mesmo histéricos é uma realidade com que nos temos vindo a confrontar. Seja quem for o interlocutor, uma argumentação não é uma luta, não é uma forte asserção emocional, mas a progressão de ideias desde as premissas até à conclusão. Numa abordagem racional, essa argumentação começa com pressupostos, os dados que acreditamos serem certos, desenvolvendo uma racionalização até alcançar conclusões. O discurso da inquietação é um discurso que tenta perfurar a razão do receptor através do apelo à sua emoção. O perigo reside na força que um tal apelo é capaz de gerar, sem que o receptor questione genuinamente as motivações que o levam a aderir.
Na sociedade contemporânea, os cidadãos devem estar alertados para estas mecânicas do comportamento, para poderem ser os verdadeiros detentores da sua opinião e do papel que querem assumir no mundo. Vale a pena repetir uma passagem da introdução de Eileen Dombrowski: Quando uma descrição não é um relato mas uma tentativa de persuasão, pode ainda assim ser considerada credível se os argumentos são suportados com boas razões e provas. É importante, no entanto, que se avalie a exposição persuasiva na base das suas justificações em vez de aceitarmos as suas conclusões na base do seu apelo emocional.