Democracia, poesia e prosa



Foi ontem emitido pela RTP o terceiro episódio da série documental Portugal, Um Retrato Social, da autoria de António Barreto. Este capítulo teve por tema Mudar de Vida: O Fim da Sociedade Rural. Percorreu a história do rápido crescimento demográfico urbano e suburbano das cidades do litoral e, inevitavelmente, da grande área metropolitana de Lisboa.
Em traços breves passa por ali um pouco da nossa história recente, de uma cultura que convive na ambivalência do rural e do urbano. Mas o mais importante é o registar de uma sucessão de erros estratégicos em matéria de expansão urbana. Para entendê-los há que reflectir também sobre a herança da ditadura, tradicionalista, e do pesado atrito com que contrariou a modernização dos processos de planeamento urbano. Uma modernização que produziu várias vagas de política de cidades na Europa e que em Portugal se foi obstando com pequenas panaceias de política de habitação económica.
Não previstas e não respondidas as necessidades de habitação das populações que iam chegando às cidades em busca de emprego e a promessa de uma vida melhor, coube-lhes improvisar a sua própria residência. Com os meios e o saber de que dispunham se ergueram inúmeros bairros precários, espalhados em torno de Lisboa e de outras cidades do país.

A vaga de construção que se manifesta na década de setenta e percorre as décadas seguintes tem em si o mal dos processos de massificação rápida. O mesmo poderíamos estender à educação, à cultura e a tudo o mais que deve integrar a vida democrática. Mas em matéria de cidades o país revelou o seu completo atraso e incapacidade de resposta. Não apenas da falta de meios do Estado, mas da falta de saber. Um país órfão de doutrina de urbanismo. A expansão das cidades ficou entregue à promoção privada desqualificada, sem planeamento e sem visão de qualidade de vida urbana ou dos mais básicos dos seus requisitos.
É este o nosso ponto de partida, hoje. Um país litoralizado e suburbano, o território inevitavelmente comprometido e disfuncional. A densificação das periferias carrega consigo o peso dos movimentos pendulares. E estes fenómenos traduzem-se em horas de cada dia, em desgaste nos cidadãos, em menos tempo de convivência em família, em pesados custos económicos, atingindo pesadamente qualquer esperança de qualidade de vida. E estes custos não são apenas individuais. Têm expressão colectiva e revelam-se numa fraca cultura de comunidade.

Um programa de televisão é um programa de televisão. Mas talvez fosse bom olharmos para este Portugal para começarmos a perceber como tantas vezes confundimos os sintomas pelas causas. Discute-se que os portugueses são isto, que são aquilo. Mas nós portugueses somos um pouco de todas estas dores, de todos estes erros e atropelos que se estendem da ditadura à democracia. E somos hoje chegados aqui. A modernização foi-se fazendo. O país está hoje praticamente servido das infra-estruturas básicas. Os equipamentos, melhor ou pior, foram construídos. Mas a cidadania que devia ser o tecido de coesão de todas estas coisas e se devia exprimir na urbanidade, persiste ausente.

A prosa lenta da democracia avança, mas perdeu-se a poesia. O desencanto fez terra queimada da história e da memória. Mas um país não é um clube de futebol e a redução do défice não enche as medidas de um desígnio colectivo. Vivemos assim o “drama” dos sintomas, na afronta de episódios mais ou menos reveladores e triste medida de um provincianismo que somos incapazes de ultrapassar. Um curioso anúncio publicitário retoma o tema da “casa portuguesa”, pão e vinho sobre a mesa, concerteza. E aquela pequenez cosy ainda ressoa na nossa mentalidade, aquilo conforta-nos. Perdemos a grandeza de quem ousa enfrentar o tempo, mas a nossa história mesmo esquecida é grande e a democracia o único caminho que nos resta.

Na paisagem fértil de Monticello, nos belos campos da Virgínia, o principal autor da Declaração de Independência encontrou a poesia da revolução democrática. Thomas Jefferson traçou em tempos a doutrina da democracia moderna: um governo eficaz mas limitado e escrutinável, o primado da liberdade individual sobre o estado tutelar, orçamentos balançados, controle local do máximo possível (subsidiariedade), e a promessa de um povo educado que defendesse a república, forçando o governo - instituição tendencialmente fechada - a divulgar as suas acções, para que homens livres pudessem votar em plena consciência.
Esta visão poética da democracia é hoje uma herança universal. Quem não o perceber não pode saber o que significa a modernidade. Mas à poesia segue-se a prosa do tempo, da sua complexidade e das muitas contradições do homem.
As dores de crescimento da democracia portuguesa e da nossa república fazem-me querer recordar Thomas Jefferson. Talvez seja uma vontade de fugir para paisagens mais profícuas, decerto românticas e porventura um pouco imaginárias. Mas já é altura de abandonarmos as depressões fúteis que nos cercam, encararmos a verdade de nós próprios e desta democracia com os seus fracos pilares. Eles traduzem-se naquelas linhas com duzentos anos de história e ressoam na promessa de um povo esclarecido em defesa da república. E nós somos este povo entregue às suas dores, em quem nunca se investiu.
Um país também deve ser um sonho. Não há desígnio mais nobre.

Fotografia: Benjamim Silva.

3 comentários:

  1. Como professor de Geografia que sou, achei o documentário muito bom.

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  2. Em Xangai arrasam-se áreas gigantescas para construir novo. Tanto que a principar fonte de poluição ali são os estaleiros de obras. Um case-study.
    Acabar com subúrbios degradados para fazer novo e bom não é mais difícil do que construir pontes, auto-estradas ou aeroportos...

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  3. Excelente texto, Daniel!
    Eu também tenho acompanhado estes (óptimos) documentários, tão crus e verdadeiros que me deixam triste.
    Uma dúvida n me tem largado... Seremos nós capazes de inverter este pessimismo? Sinto-me bastante impotente para mudar o "estabelecido" e tenho medo que a energia e optimismo que ainda tenho sejam destruídos em poucos anos, principalmente à luz do que acontece na nossa profissão. Não quero sentir-me a baixar os braços mas viver neste Portugal moderno parece uma luta permanente contra o pessimismo e depressão.

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