Fernando Guerra na Colorfoto



Uma exposição organizada por Mário Venda Nova, autor do blog de fotografia O Elogio da Sombra (que há muito faz parte dos meus favoritos), dá a conhecer um trabalho de Fernando Guerra. É uma oportunidade para descobrir uma das suas reportagens mais pessoais, fora do campo estrito da arquitectura, oferecendo um registo da vida dos Trabalhadores na Praia do Calhau em São Vicente, Cabo Verde.
A exposição está patente na Galeria Colorfoto e faz-se acompanhar do lançamento do livro Entre Reportagens, para o qual tive o prazer de contribuir com um breve texto.
Para ver até 17 de Outubro, na Rua Sá da Bandeira, 526, no Porto.

Cape Verde workers collecting basalt for use in local constructions – photography by Fernando Guerra on display in Oporto at Galeria Colorfoto, until October 17th. Exhibition catalogue available online - Entre Reportagens.

Cinza


Imagino agora o que ela terá pensado, por detrás daqueles olhos verdes, ao ver-me invadir o território sagrado da sua vida partilhada com aquela que por certo tinha como sua única companheira. Quem será este? Com que intenções se apodera do nosso lugar, do nosso tempo de aconchego, quando a noite cai e o mundo pertence apenas a nós duas?
Dediquei à pequena Cinza o mesmo desprezo que ela me dirigia. Não por desgosto ou falta de afeição. Pelo contrário, porque nestas coisas dos gatos devemos sempre respeitar os seus tempos e os seus espaços.

Passaram por certo duas semanas. Pensei que estaria para mim perdida aquela gata que a tantas doçuras se entregava pela mulher com quem um dia eu haveria de casar. E estava eu sentado, rodeado sei lá que afazeres, quando ela chegou por cima de tudo como quem atravessa o mundo. Assim me dedicou o seu primeiro beijo áspero, delicioso como se nada fosse, a maravilhosa Cinza.

Sabe quem alguma vez conviveu com gatos ou cães que todos são diferentes. Não apenas no temperamento mas no grau de evolução intelectual. Sim, eu disse intelectual. A Cinza foi, e porventura sempre será, a gata mais inteligente que eu já vi. Assim lhe dedicámos o cognome de “gato-pessoa”, pelo brilho, pelo afecto profundo, pela carência, pelo ciúme, por tudo aquilo que fez dela a mais luminosa presença da nossa casa durante os anos que agora julgaremos sempre tão curtos. E, no entanto, se as probabilidades mandassem, a Cinza já devia ter morrido há muito.

Quando a tristeza se apoderou das nossas vidas, no tempo suspenso de uma frágil gravidez perdida, foi ela quem sentiu mais fundo a dor que nos atingiu. Acolheu-a como sua, deixou de comer e assim se abeirou da morte. Duas novas palavras entraram na nossa casa: lipidose hepática. O estado clínico da Cinza disparava em valores dez vezes para lá de todas as esperanças. Diversos dias de internamento deixavam-na agora prostrada para a encontrarmos, mais um dia passado, à beira do fim.
Podíamos ler-lhe nos olhos: a Cinza desistiu de viver. Se aqui fica, morre. Falámos com os veterinários explicando porque tínhamos de levá-la para casa. Os médicos alertaram-nos para a complexidade do tratamento, com muita medicação e alimentação regular, por um tubo esofágico, de três em três horas, sem excepção. Sim, numa situação normal, levá-la para casa seria uma loucura. Mas nós não somos pessoas normais.

A Cinza viveu um mês em cima da nossa cama. Uma capa impermeável esticada, com cobertas por cima. Uma caixa de areia ao fundo, assim mesmo. Quase não se movia e a nada reagia. Mas foi sobrevivendo, dia-a-dia, àquela rotina desesperada. De quando em vez a indisposição sobrevinha para se perder em espasmos. Ficava desfeita. E a rotina recomeçava mais uma vez.
A pouco e pouco a medicação, a comida e o amor foram curando aquele frágil fígado doente. E regressou um dia, como se nada fosse, para o meio de nós, cumprimentando-nos com um novo primeiro beijo. Para mais uma vida.


A Cinza deixou este mundo, suspensa nas minhas mãos, no Domingo passado, juntando-se à nossa pequena cadela branca que morreu há cerca de dois meses. Todas as vidas começam encharcadas em dor e talvez uma nova vida tenha começado ali mesmo. Uma vida de que a Cinza já não fará parte, mas em que a lembrança dos seus gestos, dos seus abraços, dos seus beijos, do seu cheiro, fará sempre parte de nós. Possam todos conhecer, uma vez na vida, a bênção da devoção mais pura como a da nossa pequena Cinza, a gata mais extraordinária que alguma vez existiu.

I wonder now what she must have thought, behind those green eyes, as I invaded the sacred territory of a life shared with the one she deemed to be her only companion. Who is this man? What brings him to our place, invading our time of cuddling, when the night falls and the world belongs to just the two of us? I ignored Cinza just as she ignored me. Not for contempt or lack of affection. It was, in fact, the opposite, for when it comes to cats one should always respect their own time and space. [+/-]
Two weeks passed. I thought she would never offer me the compassion she candidly expressed for the woman I would one day marry. And there I was, distracted by some kind of business, when she came walking through it all and surprised me with her first sand paper kiss. Wonderful Cinza.

If you ever lived with a cat or a dog you know they are all very different. Not just in temper but in regard to intellect. Yes, I said intellect. Cinza was, and probably always will be, the most intelligent cat I have ever known. And so we gave her the nickname of “cat-person”, for her clarity, profound affection, neediness, jealousy, for all the magical things that made her the brightest presence in our home for years.

Cinza left this world, as I held her in my hands, last Sunday, joining our little white dog that passed away two months ago. Every life begins soaked in pain and perhaps a new life began that very moment. A life that Cinza will not be a part of, but in which the memory of her gestures, her hugs and kisses, her scent, will always be a part of us. May everyone know, at least once in this lifetime, the miracle of love and purest devotion that Cinza blessed us with, the most extraordinary cat that ever existed.