Avatar, a crítica da crítica e os jogos de vídeo


O desembarque da Normandia no filme Saving Private Ryan.


Imagem do jogo Medal Of Honor – Allied Assault, produzido por Steven Spielberg.

Certos filmes, em particular quando tratamos de cinema popular, despertam discussões apaixonadas sobre a opinião dos “críticos”. É um fenómeno recorrente, em particular no meio interactivo da rede como no caso bem Português do Cinema 2000, e que agora se repete com Avatar tal como havia já acontecido em episódios anteriores como os de O Cavaleiro das Trevas, O Senhor dos Anéis ou Matrix.

Sobre este tipo de debate João Lopes tem produzido pontualmente reflexões bastante didácticas no seu blogue Sound + Vision. Não deixa de ser interessante observar a multiplicidade de olhares que uma obra pode gerar, da paixão ao ódio, nascidos do olhar subjectivo de cada um. É uma subjectividade que deveria ser, mais do que respeitada, celebrada por todos. E talvez resida aí um problema de partida: se encaramos a nossa verdade como algo que se sobrepõe a qualquer outra hipótese de leitura, ou se encaramos a nossa visão como parte de uma comunidade de pessoas que connosco podem partilhar as suas diferenças e as suas leituras possíveis. Se o debate se pretende como exercício de cidadania não deve então presumir-se como atestado de anulação do outro, remetendo para uma forma de fundamentalismo da opinião.

O exemplo de João Lopes (JL) é particularmente interessante por se tratar de alguém que se tem dedicado a motivar uma expressão didáctica do exercício da crítica. Pessoalmente, sei que mesmo na discordância terei algo a aprender com ele. Ilustro esta ideia com uma referência típica de JL em alguns filmes: quando diz, por exemplo, que determinada obra tem traços de “jogo de vídeo”. Sei que fala de uma construção formal que assenta na voragem do movimento pelo movimento. Uma dimensão gratuita de construção narrativa que depende exclusivamente do valor cinético da imagem. Ora, como apreciador de jogos de vídeo (hélas), identifico aqui um preconceito de partida. Pois que inúmeros jogos têm vindo a incorporar um enorme sentido de inovação ao nível da construção narrativa interna – poupo-me a partilhar exemplos, certo que a minha condição de “geek” estará já por certo assegurada.


Imagem do jogo Modern Warfare 2.

Como curiosidade apresento um trecho de uma análise de Tom Bissell no site Crispy Gamer, a propósito do recente jogo Modern Warfare 2, em particular quanto ao retrato de um episódio de um massacre de civis protagonizado pelo jogador:
This mission is asking you to take part in the morally outrageous slaughter of innocent people guilty only of attempting to make their connecting flights to Prague and London and Kiev. The game frames this act in terms of moral necessity, which is, of course, a convention of stories with a "deep cover" conceit. A film like "The Departed" requires two-and-a-half hours of finely modulated performances and superb writing and direction to make the moral anguish of being in deep cover clear, and even then the decisions Leonardo DiCaprio's character makes are ambiguous.

Trago aqui este exemplo para demonstrar como, mesmo no universo dos jogos de vídeo, as suas limitações intrínsecas e uma crescente exigência narrativa têm vindo a produzir alguns interessantes debates no próprio meio. Ora, no que se refere ao cinema, a expressão «jogo de vídeo» trazida por JL traz uma interpretação diversa. Sobre isto, e a propósito de Avatar, interrogava-me se a extensão de certas passagens, visualmente deslumbrantes se justificariam do ponto de vista meramente narrativo, se não estivessem suportadas por uma experiência sensorial tão avassaladora. E, no entanto, este tipo de sequência de acção pura é antiga como o próprio cinema: referir, por exemplo, as gloriosas perseguições dos velhos westerns, reformuladas por Spielberg nos Salteadores da Arca Perdida, numa sequência de perseguição a cavalo a camiões nazis, contendo um “stunt” que é referência directa às acrobacias de Yakima Canutt na década de 30.

A acção pela acção não será assim, em si mesmo, um mal. Mas revela-se um problema complexo de descodificar quando a construção cinética se torna parte da própria construção narrativa. Veja-se a overdose de montagem dos filmes de Michael Bay e compare-se com o exercício de uma acção dramática, como em Saving Private Ryan de Steven Spielberg, ou no recente District 9 de Neill Blomkamp. Ou no mais elaborado papel da acção em Seven de David Fincher, como momento de anunciação da natureza dramática do mal.

Avatar distingue-se de algum cinema blockbuster especialmente dirigido às camadas adolescentes, como a saga Transformers, para revelar uma preocupação com a integridade da sua estrutura formal e narrativa. Cameron partilha a paixão por esse sentido espacial do cinema que podemos reconhecer em Spielberg, pese embora não ser dotado do seu sentido de mise-en-scène. Estaremos ainda assim em Avatar próximos dessa dinâmica de jogo de vídeo, quando a viagem sensorial é a arquitectura do próprio filme? Para onde vai este cinema? – é uma justa perplexidade que, independentemente do gosto ou da opinião de cada um, merece uma reflexão atenta. Pois que não deverá o cinema deixar de ser, aqui ou na mais distante paisagem extraterrestre, um lugar para reflectir sobre as dimensões mais íntimas da experiência de se ser humano.

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