Lá em cima





A sonda Cassini, orbitando presentemente sobre Saturno, captou estas imagens de Enceladus, a sua enigmática lua gelada. Aproximando-se a apenas 50 quilómetros da superfície, a sonda registou os detalhes extraordinários da textura lunar deste peculiar mundo alienígena. Estas imagens foram recebidas pela NASA no passado dia 28 de Outubro. Via The Antikythera Mechanism.

Quando os jogos contam histórias



No início de 2012, David Cage, director e argumentista da produtora francesa de videojogos Quantic Dream, revelou uma curta metragem de apresentação de um novo motor gráfico híper-realista em desenvolvimento pela sua equipa. Tendo lugar num futuro próximo, KARA dava a conhecer uma andróide que experienciava emoções humanas durante a sua construção numa linha de montagem.

A intrigante tech-demo, que contava com a interpretação da actriz americana Valorie Curry, revela-se agora como a base para um novo jogo intitulado Detroit: Become Human. Reencontramos assim Kara despertando para a consciência numa Detroit futurista, dominada por tensões sociais emergentes, aprendendo a viver entre os humanos e enfrentando os desafios da sua condição anómala.



Este novo trabalho de David Cage não deixará de relançar o debate, recorrente na comunidade dos videojogos, que parte de interrogar a validade deste meio enquanto veículo para a expressão narrativa. Devem os videojogos servir para contar histórias? E será que a presença de narrativas diminui o objecto do jogo?
São discussões que têm tantas vezes como ponto de partida uma visão redutora quanto a esta nova plataforma de expressão cultural entendida literalmente enquanto “jogo” – definição que se afigura hoje obsoleta tendo em conta a diversidade de manifestações que nela têm lugar.

Não se trata de argumentar que todos os videojogos devem ser impulsionados por uma história. Os jogos podem ser bons quer tenham uma dimensão narrativa ou não e, de igual modo, a presença de uma boa história não implica necessariamente que se esteja na presença de um bom jogo. Mas os videojogos, enquanto veículo de criatividade e ficção, têm vindo a revelar-se muito mais do que um mero exercício de progressão.
Está assim em causa um entendimento limitado do próprio conceito de “jogabilidade”. A função do jogo, poderia invocar-se, consistiria apenas em estabelecer barreiras ao jogador. Superando essas barreiras, o participante progride e, transpondo todos os obstáculos, “ganha”.



Uma tal leitura choca naturalmente com objectos centrados na exposição narrativa, seja através da manipulação de graus variáveis de liberdade – como encontramos em Heavy Rain ou, mais recentemente, em Life is Strange – ou tão só a partir de um percurso de descoberta e revelação – tal como em Dear Esther, The Stanley Parable ou Gone Home.

É neste interessante campo de debate que a produtora Quantic Dream tem vindo a ocupar um lugar central, explorando novas soluções de interface para envolver o jogador com a acção presente no ecrã. A função principal da jogabilidade não será assim, necessariamente, “ganhar”, mas também “sentir”. A interacção está lá para convocar a empatia e produzir uma conexão mais profunda, emocional, da própria experiência do jogo.



Apesar de resultados inconstantes, os trabalhos de David Cage, têm procurado desafiar os limites da interactividade e o papel dos videojogos enquanto suporte para contar histórias. As suas obras são uma reinvenção sofisticada do género de aventura gráfica point-and-click que se tornou tão popular durante a década de noventa, assente na progressão narrativa, no mistério e na resolução de quebra-cabeças. Mas as suas experiências pretendem igualmente convocar o jogador a confrontar-se com a necessidade de fazer escolhas capazes de moldar o curso de uma história, sem que se afigure o que esteja certo ou errado, por vezes mesmo sem a pendência de um game over. O que sabemos é que cada escolha tem consequências e que, porque escolhemos, e porque essas escolhas irão determinar o destino da nossa viagem, tudo se torna definitivo.

Aí reside a maior beleza destes exercícios. O facto de, tal como na vida, o jogador ser confrontado com a necessidade de prosseguir o seu rumo, para lá de tudo, carreando consigo as implicações das suas acções, dos sucessos e dos fracassos, sabendo que estes irão impactar a cadeia de eventos que se seguirá.
A fórmula é arriscada e nem sempre isenta de limitações. Em Beyond: Two Souls tornavam-se evidentes os artifícios em que assentava a aparente liberdade do jogador – em particular para aqueles que experimentassem desviar-se do caminho pré-determinado pela narrativa. Eis um jogo que implora pela colaboração voluntária dos participantes e que, não encontrando reciprocidade, vê desmoronar o seu realismo.



Ao contrário do que sucede nos filmes, os videojogos são manifestações abertas que permitem ao jogador tornar-se participante e director da própria experiência através de graus variáveis de interactividade e liberdade. No entanto, cada escolha que o jogador faz dentro do perímetro daquela ocorrência é determinado pela visão e pelos parâmetros definidos pelos seus criadores. A interactividade é uma parte integral da estrutura do jogo, tal como o seu design conceptual, a sua música, a sua história.

Detroit: Become Human irá certamente convocar uma nova reflexão sobre as potencialidades e as fragilidades da exposição narrativa e do hiper-realismo cinemático – agora abeirando-se dos limites do paradigmático uncanny valley . Será incapaz de superar os condicionalismos sentidos no passado ou conseguirá David Cage conjugar as liberdades próprias do território do jogo com as virtualidades do mais clássico storytelling? – eis a interrogação que fica enquanto aguardamos pelo lançamento deste promissor projecto de ficção científica com a chancela da Quantic Dream.

Filmar o infilmável



Este texto contém spoilers sobre o filme Interstellar de Christopher Nolan.

Um dos traços da genialidade de 2001: Odisseia no Espaço reside na supressão de explicações para os factos que nos dá a ver. Kubrick não faz concessões ao espectador em benefício da contextualização ou da apreensão mais ampla da sua estrutura narrativa.
Tal não significa que não exista uma lógica inerente aos eventos que convoca. Significa apenas que, na perspectiva humana de tais acontecimentos, a compreensão está para lá da vivência primeira dos seus mistérios.

Na verdade, como nos revela o livro de Arthur C. Clarke publicado no mesmo ano de 1968, existem explicações objectivas e consistentes para o segredo dos monólitos – instrumentos de origem extraterrestre que supervisionam a evolução de novas espécies em planetas dispersos do cosmos – ou para a viagem onírica de Dave no capítulo final da história. Aquilo que muitos tomavam como representação alegórica ou simbólica traduzia a dificuldade em abarcar o encontro com forças e poderes maiores do que o alcance da compreensão pelo Homem. O filme de Stanley Kubrick é assim, por essa mesma razão, muito mais abstracto do que o livro que serve de complemento à sua narrativa.

Em contraponto, talvez o maior defeito de Interstellar seja a necessidade persistente de explicar o que está a acontecer ao espectador. Tratando-se de uma obra claramente inspirada naquele clássico de Kubrick, terá faltado a Christopher Nolan a lucidez para subtrair explicações ao invés de as aditar, a cada passo, em exercícios de repetida exposição. Será porventura reflexo da vontade de validar para o exterior a sólida substância científica que lhe serve de base e que resulta do contributo de Kip Thorne, especialista em física teórica do reputado California Institute of Technology, enquanto consultor do filme.

Sendo Interstellar resultado de um trabalho profundo de consolidação científica na sua representação de conceitos limite como os buracos negros e os wormholes, o filme assenta num trabalho visual que, nos seus melhores momentos, conjuga a grande ciência com uma inspirada arte conceptual. No entanto, fica no ar a interrogação se não seria melhor deixar esses momentos discorrerem, na sua plenitude artística, despojados dos fundamentos teóricos que os sustentam.

Uma das ideias mais interessantes que o filme elabora consiste na especulação em torno de um evento de cinco dimensões. O conceito tem uma base simples. Habitamos uma realidade física de três dimensões onde somos livres de aceder, em teoria, a qualquer ponto do espaço. A estas soma-se uma quarta dimensão: o tempo. Nesta última, no entanto, estamos presos a um ponto fixo – o presente – estando-nos vedada a possibilidade de movimento, em qualquer direcção, seja para o passado ou para o futuro.

O que aconteceria então se pudéssemos, por um instante, transcender para uma outra dimensão onde fosse possível deslocarmo-nos através do tempo, com a mesma liberdade com que nos deslocamos no espaço. É esse o conceito a que o filme dá corpo através do intrigante Tesseract – uma construção desenhada por seres que transcenderam as quatro dimensões da realidade humana, tornando-se capazes de apreender a integridade do tempo no Universo.

É viajando no Tesseract que Cooper, um dos cosmonautas da expedição ao buraco negro de Gargantua, consegue percorrer um ponto do espaço através do tempo – agora transformado numa dimensão física não linear – e assim comunicar com o passado. A ideia é engenhosa e revela-nos Interstellar em toda a sua grandeza; que a arte se revela a melhor forma de explicar ciência, sem que fossem precisas palavras, apenas dando corpo à abstracção daquele profundo mistério.

Apesar das suas fragilidades narrativas, Interstellar é uma das grandes obras de ficção científica desta década e um filme que ficará na história do género, para discutir e revisitar durante muitos anos.

O malogro grego



O fim-de-semana decisivo das negociações do terceiro resgate grego, entre os dias 10 e 13 de Julho de 2015, ficará para sempre gravado na história do projecto europeu. Não resisto a partilhar aqui a ligação para a excelente investigação jornalística levada a cabo pelo The Guardian (via Tudo Menos Economia) documentando a crónica desses dias mais longos em que Wolfgang Schäuble e Angela Merkel subjugaram a Grécia com a conivência da generalidade dos líderes europeus; ler Three Days That Saved The Euro.

Como complemento igualmente fundamental, vale a pena ler uma entrevista do jornal online francês Mediapart a um consultor sénior do governo grego que acompanhou os cinco meses de negociações entre Atenas e os credores internacionais – uma história digna de um filme ao melhor estilo de Oliver Stone; ler 'We underestimated their power': Greek government insider lifts the lid on five months of 'humiliation' and 'blackmail'.

Finalmente, fica também a ligação para o registo da conferência de Yanis Varoufakis que teve lugar no passado dia 17 de Outubro, num evento organizado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; ver Democratising the Eurozone (vídeo).

Onde pára o futuro?



A chegada do dia em que Marty McFly visitou o futuro a bordo de um DeLorean voador – a 21 de Outubro de 2015 – foi motivo de celebração planetária na internet. O fenómeno dá conta da enorme popularidade que o Regresso ao Futuro conquistou ao longo de três décadas, tornando-se num verdadeiro objecto de culto entre os fãs da ficção científica.

Muitos dos artigos publicados ao longo do dia de ontem dão conta das semelhanças e das diferenças entre esse futuro imaginado em 1989 – o ano de estreia do segundo capítulo da série – e o presente. Tratando-se de exercícios divertidos de comparação entre a realidade e a ficção, podem no entanto fazer esquecer alguns aspectos importantes quanto às origens e à natureza do sub-género de ficção científica a que BTTF pertence.

A trilogia criada por Robert Zemeckis tem na sua origem a tradição da sci-fi fantasista que se popularizou nos Estados Unidos, a partir dos anos trinta do século passado, com a emergência de revistas e almanaques com histórias sobre temas como as viagens ao espaço e a visita de extraterrestres. É um género de ficção científica que conheceu o seu apogeu durante a década de 1950 com a procura crescente do público pelo entretenimento cinematográfico, fomentando a produção de filmes de Série B e dando origem a fenómenos televisivos como The Twilight Zone e Outer Limits.

Regresso ao Futuro não deixa de fazer referência directa a esse património cultural através da figura de George McFly, o pai de Marty, que se revela autor do livro A Match Made in Space – considerado entre os mais aficionados do género como um dos mais famosos livros de ficção científica que nunca foram escritos.

Não sendo assim uma obra de especulação científica nem oferecendo uma prospectiva realista da vida no ano de 2015, não deixam de ser curiosas as proximidades entre a visão imaginada neste clássico da década de oitenta e o mundo em que vivemos. É certo que à primeira vista as diferenças são notáveis: não temos carros voadores, não usamos resíduos orgânicos como combustível, os boletins meteorológicos não acertam as suas previsões ao segundo e estamos ainda longe de inventar os skates anti-gravitacionais. Mas é no sub-texto, para lá da superfície, que as coisas se tornam interessantes.

Regresso ao Futuro fala-nos de um 2015 onde o maravilhamento das hiper-tecnologias coexiste com formas pouco perceptíveis de disfuncionalidade social. A casa do envelhecido Marty Mcfly é um lugar onde se convive com uma profusão de gadgets e artefactos tecnológicos, com generosos ecrãs de televisão e sistemas de vídeo-conferência. No entanto, os seus filhos parecem viver absortos nos seus óculos de realidade aumentada – tal como hoje sucede com tantas famílias subjugadas pela profusão de smart-phones e tablets, em que todos parecem conviver isoladamente juntos.

Também o bairro suburbano de Hilldale, onde se situa a casa de sonho de Marty, se revela um lugar estranhamente decadente, falando-nos do empobrecimento da classe média e da suburbanização da pobreza. O futuro de Back to the Future é, afinal, um lugar de profunda contradição, não tão distante assim do mundo que hoje tão bem conhecemos.

Quando saímos da sala de cinema nesse glorioso ano de 1985 cheios de vontade de vestir um colete vermelho, ligar o leitor de cassetes portátil e envergar óculos Ray-Ban espelhados, estávamos longe de imaginar que o ano tão distante de 2015 seria, ao mesmo tempo, tão diferente e tão próximo daquilo que a sétima arte era capaz de inventar.

Pântano mediático


Image credits: Ben Zank.

O mais interessante de vivermos uma crise verdadeira é revelarem-se aspectos do mundo que são, em condições normais, difíceis de vislumbrar. Um deles é a forma como a hiper-mediatização de tudo intoxica a política.

Os media criaram todo um modo de interpretação da realidade e, naturalmente, também daquilo que faz parte do processo político. Um desses mecanismos é a ideia da política como um processo competitivo que tem a sua exaltação nos períodos eleitorais. Jornalistas, comentadores e actores partidários interrogam-se sobre quem vai à frente e atrás nas sondagens. Quem ganhou e quem perdeu o debate. E, como corolário dessa espécie de corrida de galgos, quem ganhou e quem perdeu as eleições.

Sucede que as regras do sistema político, assentes em pressupostos com lastro histórico que muito antecede a era da hiper-mediatização e do "corporate media", não partilha desses pressupostos. E sucede também, como devia ser evidente para todos, que a democracia é defendida pelas regras do sistema político, e não pelas regras do mundo mediático.

Não vale sequer a pena retomar os termos do famigerado artigo 187 da Constituição da República Portuguesa. Mas importa sublinhar que não existe nada naquela Constituição que estabeleça como se apuram "vencedores" e "derrotados" nos processos eleitorais. O que há é a consagração de um quadro parlamentar que resulta da expressão do voto dos cidadãos. E esse quadro dita as circunstâncias em que o processo político e legislativo pode e deve prosseguir.

Se há, aliás, algo que esta crise demonstra é mesmo a superioridade da democracia como sistema capaz de resolver momentos de acentuado conflito e de crise. É mesmo para isso que serve a democracia. E se o risco do "pântano" político existe, ele está em não deixar que os mecanismos próprios do sistema funcionem.

Que o destino de um dos mais críticos momentos da Democracia Portuguesa esteja nas mãos do mais inábil Presidente que a República já produziu é uma das ironias da nossa História. Certo é que aquilo que a memória histórica ditará sobre este Presidente se vai definir pelas decisões que tomará nas próximas semanas ou meses. E que, depois desta crise, nada ficará exactamente como era antes.