Tatiana Bilbao: The House and the City



A Harvard Graduate School of Design tem vindo a partilhar um conjunto de conferências que vale a pena acompanhar, merecendo destaque a palestra de Kenneth Frampton sobre a arquitectura contemporânea nos países com economias de mais rápido crescimento, em particular a China.
No vídeo acima podem assistir à recente apresentação de Tatiana Bilbao, arquitecta sediada na cidade do México, dando a conhecer de forma detalhada o seu processo de trabalho, do entendimento do lugar ao cuidado com a materialidade dos processos de construção, procurando criar espaços humanizados capazes de auxiliar o desenvolvimento cultural e económico das comunidades em que se inserem.

”The House and the City”, conference with Mexican City based architect Tatiana Bilbao for The Harvard Graduate School of Design. Tatiana Bilbao, through the work of her multicultural and multidisciplinary office based in Mexico City, attempts to understand the place that surrounds her and to translate its rigid codes into architecture. As a reaction to global capitalism, the studio aspires to regenerate spaces in order to humanize them and to open up niches for cultural and economic development.

Arquiteturas Film Festival +



Arquiteturas Film Festival
Começa hoje a quarta edição do Arquiteturas Film Festival Lisboa, uma mostra internacional de filmes documentais, experimentais e de ficção sobre a temática da arquitetura. O programa completo pode ser descarregado aqui. Para acompanhar até ao dia 16 de Outubro.



Esquissos de 21 arquitectos em exposição no Museu Nacional Soares dos Reis
My Own Private Phosphenes – Patrimónios Imaginados é uma exposição dedicada à importância da manualidade do desenho na arquitectura, dando a conhecer esquissos de arquitectos como Adalberto Dias, Álvaro Siza Vieira, Raúl Hestnes Ferreira, Alexandre Alves Costa, Gonçalo Byrne, João Luís Carrilho da Graça, José Mateus e Manuel Aires Mateus, entre outros. Para ver no Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto, até 31 de Outubro.



Primeiro debate do novo projecto Jornal Arquitectos
Os grandes eventos internacionais são plataformas de visibilidade que geram debate, prestígio e criam novas oportunidades concretas de trabalho àqueles convidados a expôr. Após a festa, ficam contactos e novas dinâmicas que extravasam a dimensão cultural da arquitectura e que, desejavelmente, podem criar oportunidades para novos projectos de arquitectura.
Debate com o tema Após a festa: os novos projectos, promovido pelo Jornal Arquitectos, no Centro Cultural de Belém, sala Maria Helena Vieira da Silva, às 17h00 do dia 15 de Outubro.



Entre Vizinhos – Encontro no Bairro da Malagueira
Conversa à volta do projecto de Álvaro Siza e filme Bonjour Tristesse, Berlim de Cândida Pinto. Com a moderação de Nuno Ribeiro Lopes, arquitecto e gestor do plano da Malagueira, e a presença de Brigitte Fleck, autora do livro Malagueira, Alvaro Siza’s Legacy, José Russo, presidente da Junta de Freguesia, a jornalista Cândida Pinto, autora da série Vizinhos, Nuno Grande e Roberto Cremascoli, curadores do Pavilhão de Portugal. Na Associação Santa Maria e Fontanas, às 18h00 do dia 21 de Outubro.



O Que É Aquele Tempo? Exposição A TUA CASA / Atelier dos Remédios
O que é aquele tempo? É uma memória do passado recente, nos anos em que os arquitetos foram contratados para pensar criativamente e projetar de forma inteligente. Fomos incentivados pelos clientes para contemplar soluções com fantasia. Também fomos capazes de aplicar o nosso conhecimento para criar experiências de habitar únicas. Por todas estas razões, o Atelier dos Remédios mostra dois trabalhos d’aquele tempo na sede da OA, que abordam temáticas e escalas diferentes. Através da apresentação de Moradia Monte do Córrego e da E.S. Rainha Dona Leonor (prémio Valmor 2011, ex-aequo), quer pela nossa produção, quer pelo olhar de outros, gostaríamos de introduzir tanto a narrativa, como as ambições criativas do escritório, para o público. Acreditamos existirem valiosas lições a serem aprendidas a partir do nosso passado recente. Com “O que é aquele tempo?“ propomos reflectir sobre o desaparecimento da poética do espaço da nossa disciplina com a mudança no interesse do mercado, e sobre a necessidade de recuperá-la para a arquitectura, apesar das circunstâncias actualmente desfavoráveis.
Para ver na Sede Nacional da Ordem dos Arquitectos, em Lisboa, até ao dia 26 de Outubro.



Modern Masterpieces Revisited
A exposição «Modern Masterpieces Revisited» de Luís Santiago Baptista, comissariada por Bárbara Silva, apresenta um conjunto de imagens graficamente manipuladas que colocam em confronto obras da arquitectura moderna com o actual contexto social e político. A exposição inaugurou no passado dia 1 de Outubro e continuará patente na Circo de Ideias até 5 de Novembro.



Exposição Habitar Portugal 12-14 em Évora
Destaque final para a Exposição Habitar Portugal 12-14 que continua no Fórum Eugénio de Almeida, em Évora, até ao dia 30 de Outubro. No próximo dia 27 terá lugar mais uma conversa à volta das obras em destaque na exposição. Antes do debate será possível visitar as obras com a presença dos arquitectos Aires Mateus, Francisco Barata, José Carlos Cruz e Cândido Chuva Gomes. Um resumo do programa está disponível aqui.

Trienal de Arquitectura de Lisboa +


Imagem: Pedro Silva.

Trienal de Arquitectura de Lisboa
Já começou a quarta edição da Trienal de Arquitectura de Lisboa, sob o título A Forma da Forma. Com um programa preenchido de exposições, debates e conferências, em paralelo com um vasto conjunto de eventos complementares, a Trienal continua a afirmar-se como uma plataforma para reflectir sobre os muitos processos da arquitectura a partir de um olhar diversificado e um alcance que se estende além-fronteiras. Ficam as ligações para alguns dos principais destaques desta edição.

Exposição A Forma da Forma
Um legado fundamental da arquitectura é a sua própria forma. Não só a história se constrói a partir desse universo visual, mas a forma é também uma linguagem comum que agrega arquitectos de todo o mundo em torno de uma conversa colectiva.
Para descobrir no novo MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, a exposição A Forma da Forma foi comissariada por Diogo Seixas Lopes e convida os visitantes a questionar o significado da forma no passado, no presente e no futuro do desenho da arquitectura.

Exposição Obra
Tal como as formas da arquitectura determinam a organização do estaleiro de obra, as tecnologias e a estrutura económica com que a sociedade organiza os seus modos de produção condicionam, e estimulam, a concepção do projecto.
Integrada na programação da Trienal, a exposição Obra está patente na Fundação Calouste Gulbenkian e interroga as relações que se estabelecem no decurso do projecto à obra, com as tensões decorrentes da organização do tempo e da gestão dos custos, da transformação dos factores tecnológicos e das interferências políticas.

Exposição O Mundo nos Nossos Olhos
Os poderosos processos de urbanização que ganharam forma durante o século XX concederam aos arquitectos material para construírem abordagens ideológicas tomadas directamente da cidade e da sua acelerada transformação.
O Mundo nos Nossos Olhos é uma exposição que pretende promover o debate sobre o modo como a nossa compreensão da urbanidade e do território, no presente e no passado, determina o processo de projecto e as suas ramificações para fora da disciplina, aspirando a trazer outros públicos para a compreensão da cidade.

Exposição Sines: Logística à Beira-Mar
Como pode a arquitectura intervir na mecânica produtiva das infra-estruturas logísticas? Como pensar em usos partilhados e nos espaços de fronteira entre cidade e linha de costa, num contexto dominado por infra-estruturas de grande porte?
Tendo por base a colaboração de estudantes e professores de 14 cursos de arquitectura e arquitectura paisagista, esta exposição reúne os exercícios mais relevantes em torno da relação entre a cidade de Sines e a componente industrial e logística do seu território. Para visitar no edifício sede da Trienal de Arquitectura, o Palácio Sinel de Cordes, em Lisboa.

Debates Talk, Talk, Talk
As exposições centrais serão o ponto de partida para três conferências a 17, 18 e 19 de Novembro, representando um segundo momento alto do programa da Trienal. Realizadas em espaços de conferência contíguos às exposições na Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Cultural de Belém e MAAT, trarão a palco arquitectos, investigadores e actores destacados do panorama internacional da arquitectura.
Uma referência final para as conferências principais da Trienal que terão lugar em meados do mês de Novembro. Todas as informações disponíveis no sítio web oficial da 4ª edição da Trienal de Arquitectura de Lisboa.

Valor tributário e valor de mercado (2/2): qual é o valor tributário de uma moradia de 1 milhão de euros no Restelo?



Ainda que o valor patrimonial tributário possa pontualmente ser superior ao valor de mercado, em particular nas habitações de menor custo, o modelo de cálculo utilizado pela Autoridade Tributária faz com que os imóveis mais onerosos sejam avaliados com um valor muito inferior. Por este mesmo motivo, uma casa com valor tributário de 500 mil euros terá sempre um valor de mercado muito mais elevado, dificilmente ao alcance de pessoas com rendimentos equiparáveis aos da classe média. [1/2]

Para melhor ilustrar o desfasamento entre o valor patrimonial tributário e o valor real de mercado, resultante do modelo de cálculo utilizado pela Autoridade Tributária para a avaliação de imóveis, tomemos como exemplo uma moradia no Restelo com valor superior a 1 milhão de euros.

O exercício tem por base um caso real extraído do sítio web de uma popular imobiliária: uma habitação unifamiliar isolada de dois pisos com garagem para duas viaturas, com área bruta privativa de 240 metros quadrados e área bruta dependente de 45 metros quadrados, num terreno de 350 metros quadrados, à venda por um valor superior a 1.250.000 euros.

Considerou-se o coeficiente de localização mais punitivo, com o majorativo máximo de 3,5, aplicando-se ainda majorantes de qualidade e conforto relativos à tipologia (moradia), existência de garagem individual, sistema central de climatização e localização excepcional.

O valor patrimonial tributário resultante varia conforme a idade do prédio, da qual resulta o importante coeficiente de vetustez. Sendo o Bairro do Restelo da década de quarenta do século passado, consideraram-se para efeitos deste exercício três valores possíveis para a idade: (mais de) 60 anos, 20 anos (no caso de uma recuperação relativamente recente), ou apenas 1 ano (para identificar o valor de avaliação mais elevado possível). Os resultados são os seguintes:

— 60 anos: valor patrimonial tributário de 377.770,00 €;
— 20 anos: valor patrimonial tributário de 549,480,00 €;
— 1 ano: valor patrimonial tributário de 686.850,00 €.

Temos assim que os valores obtidos são, nos casos mais elevados, próximos de metade do preço de venda do imóvel. Na situação mais favorável, com o coeficiente de vetustez máximo, atingimos mesmo um valor patrimonial inferior a 400 mil euros.

Importa relembrar que o coeficiente máximo aplicado neste caso (de 3,5) só é aplicável a localizações de excepção no território nacional, em Lisboa ou no Algarve (Baixa-Chiado, Bairro do Restelo, frente do Parque das Nações, Quinta do Lago, Vale de Lobo). Os coeficientes de localização em Lisboa podem variar entre 1,6 e 3,5; no Porto entre 1,5 e 2,5 (com uma excepção de 3 para a Avenida de Montevideu); em Setúbal entre 1,4 e 1,75; em Coimbra entre 1,35 e 2,45 – para dar apenas alguns exemplos.

Este exercício permite-nos confirmar que um imóvel com valor tributário de 500 mil euros é, na verdade, um imóvel com preço de mercado próximo do dobro deste valor. De igual modo, um imóvel transacionado no mercado por valores próximos do meio milhão de euros tem um valor patrimonial bastante inferior.
Quando confrontamos a realidade destes factos e destes números com a retórica inflamada que está a ser propagada pela mídia portuguesa temos de nos interrogar sobre quem representam e que interesses defendem afinal os seus editorialistas e comentadores.

Valor tributário e valor de mercado (1/2)

A criação de um imposto progressivo sobre o património imobiliário de luxo abrangendo imóveis com valor superior a 500 mil euros tem motivado as reacções mais diversas. Entre os vários argumentos apresentados pelos críticos da proposta está a ideia de que este imposto irá atingir a classe média por incidir sobre bens imóveis de valores inflacionados pelas avaliações das finanças, sem qualquer correspondência com a realidade do mercado. Trata-se de um argumento completamente falso – tanto mais falso quanto mais elevado é o valor de mercado dos imóveis. Vejamos porquê.

O cálculo do valor patrimonial tributário tem por base a atribuição de um valor médio de construção por metro quadrado de 482,40€, considerando-se um acréscimo de 25% como correspondente ao metro quadrado do terreno de implantação. Resulta assim, pelos termos estabelecidos para 2016 (e que se mantêm inalterados desde 2010), um valor base de 603,00€.
Estamos na presença de um parâmetro de referência baixo, mais próximo da realidade dos imóveis de menor custo – um apartamento suburbano – e bastante distante do custo por metro quadrado de um imóvel no centro de uma cidade ou de uma moradia unifamiliar num bairro bem localizado.

É sobre o produto daquele valor com a área da habitação que vão incidir os restantes parâmetros de cálculo tais como os coeficientes de localização, de qualidade e conforto ou de vetustez. Mas antes temos de considerar o efeito do denominado “coeficiente de ajustamento de áreas”, dado que faz reduzir gradualmente o valor base à medida que a área de uma habitação vai aumentando, até atingir apenas 80% daquele valor para as áreas superiores a 220 metros quadrados – ou seja, apenas 482,40€.
Significa isto que quanto maior é a área de uma habitação menor é o valor base aplicado no seu cálculo – dado que favorece as casas com maiores dimensões e penaliza as casas mais pequenas.



Dos diversos coeficientes que incidem para o cálculo do valor patrimonial tributário, o coeficiente de localização é aquele que tem por função reajustar o valor base às realidades do mercado, estabelecendo a diferenciação entre o custo de um imóvel num subúrbio ou num centro urbano, numa zona de menor qualidade urbanística, num bairro histórico ou num condomínio de luxo. Sucede que este coeficiente tem um valor majorativo máximo de 3,5, resultando, nos casos com maior penalização, um valor base de 2.110,50€ – com efeito por inteiro apenas até aos 100 metros quadrados, reduzindo progressivamente por acção do referido coeficiente de ajustamento de áreas anteriormente descrito (ver imagem acima).

Estamos a falar de um factor (3,5) só aplicável a localizações de excepção, em Lisboa ou no Algarve, tais como a Baixa-Chiado, o Bairro do Restelo, a frente do Parque das Nações, a Quinta do Lago ou Vale de Lobo. Locais onde o custo de mercado de uma habitação atinge facilmente valores da ordem dos 3.500,00€ ou 4.000,00€ por metro quadrado, podendo mesmo ser superior.

Muito dificilmente a acção conjugada do coeficiente de qualidade e conforto com o coeficiente de vetustez irá aproximar os parâmetros de cálculo para valores daquela ordem de grandeza. Em alguns casos, tais como o Bairro do Restelo e outros bairros históricos, o efeito da antiguidade ditará mesmo a redução daquele parâmetro para menos de metade, tornando o valor patrimonial tributário muito distante do preço real dos imóveis – situação que tenderá a ser semelhante ao caso das heranças onde o factor de vetustez terá tendência para ser também mais favorável.

Ainda que o valor patrimonial tributário possa pontualmente ser superior ao valor de mercado, em particular nas habitações de menor custo, o efeito conjugado dos diversos parâmetros de cálculo faz com que os imóveis mais caros sejam avaliados pelas finanças com um valor muito inferior. Por este mesmo motivo, uma casa com valor tributário de 500 mil euros terá sempre um valor de mercado muito mais elevado, dificilmente ao alcance de pessoas com rendimentos equiparáveis aos da classe média.

Tendo em conta que estamos perante a proposta de criação de um imposto progressivo, cuja incidência abrangerá um universo reduzido de cidadãos com património de grande valor, a histeria que vem sendo levantada em torno desta possível medida parece assim reflectir não uma preocupação com os cidadãos mas um desfasamento entre comentadores e editores de órgãos de comunicação, preocupados que estão em proteger as circunstâncias de uma pequena minoria, da realidade social em que vive a maioria dos portugueses.

Exposição Habitar Portugal em Évora



Depois de ter passado pelo Porto, Coimbra, Viseu e Tomar, chega agora a Évora a exposição Habitar Portugal 12-14. É a quinta de um conjunto de mostras que tem percorrido o território nacional, dando a conhecer uma selecção de 80 obras de arquitectura construídas no triénio 2012-2014.

O período a que esta edição corresponde é coincidente com o programa de resgate financeiro a que Portugal esteve sujeito. Quis-se, por isso, analisar e compreender o impacto que inevitavelmente este facto teve na prática dos arquitectos portugueses. A observação destas obras não torna evidente uma preocupação específica com os programas ou as actuações que, de uma forma ou de outra, incorporaram a actual situação social, política e económica como um seu motivo. Procura, antes, perceber qual o impacto desse estado que ainda não sabemos quanto de transitório terá, de que formas se manifesta e que consequências deixa.

A exposição tem inauguração marcada para o próximo Sábado, 24 de Setembro, às 17h30, no Fórum Eugénio de Almeida, onde estará patente até ao dia 30 de Outubro. Mais informações disponíveis na página da Ordem dos Arquitectos.

A queda de Sirius



O Nerdwriter tem vindo a estabelecer-se como um dos melhores canais de cinema no YouTube. Um dos seus mais recentes vídeos – What The Truman Show Teaches Us About Politics – apresenta uma análise do filme The Truman Show, estreado em Portugal com o título “A Vida em Directo” no ano de 1998. Em causa está muito mais do que destacar os contornos visionários da obra de Peter Weir, seja pelo advento da vigilância de massas ou da omnipresença da reality tv. Trata-se antes de olhar para a perturbadora correlação entre o cenário simulado de Seahaven e a sociedade em que vivemos.



Evan Puschak, autor do Nerdwriter, faz notar que a sobrevivência do mundo fictício que rodeia Truman Burbank carece de muito mais do que um exército de actores ou uma parafernália de tecnologia oculta. Para lá de tudo isto, a existência de Seahaven depende de um factor muito mais simples: que o próprio Truman acredite que aquele mundo é verdadeiro.
Do mesmo modo, Evan propõe que também o mundo em que vivemos precisa que acreditemos nas suas regras. Que, acima de tudo, a sustentação de uma ideia de realidade depende de nos mantermos imóveis na perspectiva da verdade que ele nos apresenta.

Assim, tal como a queda de uma estrela artificial ou os vislumbres por detrás do cenário vão servindo de perturbador alerta na vida de Truman, também os sinais alarmantes do presente nos vão revelando as fragilidades de uma realidade que outrora julgávamos tão robusta e perene. E, no entanto, tal como Truman, também nós temos dificuldade em enfrentar a inquietação do que esses sinais nos revelam, preferindo o conforto daquilo que sempre tomámos como certo e nos é familiar a, em alternativa, despertar para o desconhecido.



Curiosamente, é um pouco sobre isto que nos fala um recente vídeo de Derek Muller no Veritasium. The Illusion of Truth aborda o conceito de conforto cognitivo , definição do campo das neurociências para a tendência humana em acreditar naquilo que nos é mais familiar. Dito de forma simples, as coisas a que somos expostos constantemente parecem-nos mais verdadeiras.

Ainda que se trate de um mecanismo essencial no reconhecimento intuitivo de factos sobre o mundo que nos rodeia, o conforto cognitivo pode ser estimulado artificialmente de modo a tornar-nos mais susceptíveis a aceitar determinadas ideias – facto bem conhecido no campo da publicidade ou do marketing político. O conforto cognitivo é fácil e não requer grande esforço da mente humana. Ideias que desafiam as nossas convenções ou preconceitos, por outro lado, requerem esforço. O pensamento crítico contraria a nossa intuição e afasta-nos do estado de segurança mental para que tendemos a mover-nos por defeito.

Talvez seja por tudo isto que, tal como Truman, nos sintamos mais confortáveis não questionando aquilo em que acreditámos durante toda a vida, mesmo perante as evidências crescentes de falsidade que vão rompendo o cenário em nossa volta. Num tempo em que a tecnologia tornou instantânea a partilha e a disseminação de entendimentos da realidade, nunca foi tão fácil estimular o nosso conforto cognitivo e promover convicções familiares com que nos sentimos bem. Mas talvez devêssemos também ter presente que os mecanismos da nossa inteligência são falíveis e que se queremos distinguir entre os factos e a fantasia poderemos ter de pagar o preço de viver no desconforto da dúvida, da incerteza e do desconhecido, tão próprios de quem carrega o seu pensamento crítico pelo mundo.

Dos mega-eventos como modelo de investimento


Imagem: Tércio Teixeira.

A abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro no início de Agosto ficou marcada por várias acções de protesto na cidade, chegando a registar-se situações de confronto entre manifestantes e polícia militar. A tensão que antecedeu o evento foi o corolário de um processo de contestação que se estendeu durante vários anos. Em causa estava o desagrado perante os gastos elevados envolvidos na preparação e promoção de mega-eventos desportivos num contexto de fortes contrastes e profundas carências sociais e económicas.

Estima-se que mais de 60 mil pessoas tenham sido expropriadas de suas casas na cidade do Rio no decurso do processo de preparação da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Grupos de residentes promoveram campanhas nas redes sociais para salvar as suas comunidades, denunciando os métodos intimidatórios utilizados pelas autoridades brasileiras. A repercussão internacional destas acções de protesto chegou mesmo a justificar o envolvimento da Amnistia Internacional, lançando uma vasta petição pelo fim das “remoções compulsórias”.

Ainda que a retórica institucional invoque a melhoria de condições de vida para os realojados, alguns investigadores denunciam o que se tornou numa estratégia de planeamento urbano assente na deslocalização das populações mais pobres para zonas periféricas, deixando os territórios desocupados livres para receber novas infraestruturas – quase sempre através de modelos de parceria público-privada – e bairros residenciais de luxo. Em causa está um processo de sanitização social que motivou a crítica aos Jogos Olímpicos como tratando-se dos “jogos da exclusão”.


Imagem: Mario Tama.

Pese embora o enquadramento de desigualdade social vivido no Brasil, a vaga de contestação popular que ali teve lugar não é, de forma alguma, um caso único. Das críticas ao despesismo dos Jogos Olímpicos de Atenas em 2004 aos confrontos violentos que assolaram a cidade de Milão no dia de abertura da Exposição Universal de 2015, não esquecendo o escândalo de corrupção que envolve a organização do Mundial do Qatar em 2022, incluindo o drama das condições desumanas a que estão sujeitos os trabalhadores da construção civil naquele país (com registo de mais de mil mortes nos últimos quatro anos), são cada vez mais recorrentes as vozes que se erguem em oposição à organização de mega-eventos um pouco por todo o mundo. Falamos afinal de iniciativas que envolvem avultados investimentos públicos que se acabam por traduzir, tantas e tantas vezes, em casos notáveis de tráfico de influências e más práticas de gestão.

As patologias que envolvem estes processos são bem conhecidas: da sub-orçamentação de custos às expectativas de retorno inverosímeis, os mega-investimentos são o exemplo paradigmático do benefício dos agentes privados – primeiramente actores no lobbying político em favor da sua realização e, posteriormente, intermediários na ocultação do endividamento público – participando, sem risco, sob o manto das garantias contratualmente assumidas pelos promotores estatais.

O risco público, no entanto, é imenso, sendo certo que os mega-eventos não podem falhar. Os intermediários sabem que os projectos têm de ser concluídos a qualquer preço e que, aconteça o que acontecer, os contribuintes serão chamados a pagar a conta, qualquer que seja o custo final.
Estamos assim na presença de um modelo de investimento de difícil controlo, levado a cabo em contextos de enorme pressão temporal e, consequentemente, de uma grosseira simplificação de procedimentos, centralização do processo de decisão e reduzido escrutínio público. Os resultados são evidentes na pouca transparência que os envolve e no favorecimento de fenómenos de corrupção.

Perante o desencanto generalizado que despertam nas populações, os mega-eventos parecem agora repercutir apenas os desejos autocráticos dos seus promotores, beneficiando da complacência política crescente das organizações que os tutelam para com países onde estão ainda ausentes mecanismos de monitorização independente. Deixam, no entanto, atrás de si, em tantas cidades e sobre aqueles que as habitam, um rasto de infraestruturas abandonadas e um acumulado de dívidas que pode levar muitas décadas a saldar.

Referências:
1. CityLab: Mega-Events Are a Disease – Seven reasons they’re so terrible for cities; Eric Jaffe;
2. Jacobin: A Better Olympics Is Possible – We can turn the Olympics from a corporate wonderland into a place of mass celebration and popular competition; Mark Perryman;
3. Politize!: Copa do Mundo e Jogos Olímpicos, Valeu a pena?; Bruno André Blume;
4. Olympic Favela – an ongoing photography and video project that visualizes the effects of forced removal of residents in 14 of Rio de Janeiro’s favelas, implemented by the city government in preparation for the 2016 Olympic Games; Marc Ohrem-Leclef;
5. Co.Design: Photographing A Different Side Of The Olympics: The People They Evicted – The games are over, but their impact on Rio will last for generations, for better or worse; Meg Miller;
6. CityLab: The Families Displaced by the Rio Olympics – The photographer Marc Ohrem-Leclef documents the effects of forced evictions in the favelas; Eillie Anzilotti;
7. Mail Online: Living in the shadow of the Olympics – Inside Brazil’s ‘favelas’ just yards from stadium where hundreds of millions of dollars have been spent ahead of the Rio Games; Gareth Davies;
8. Vice: Por dentro das manifestações contra os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro; Angela Almeida, John Surico;
9. Dezeen: Anti-Expo protests turn violent in Milan;
10. The Guardian: Expo 2015, What does Milan gain by hosting this bloated global extravaganza?; Milan’s Expo is one of the most controversial world’s fairs ever staged in Europe. Oliver Wainwright inspects the pavilions of the 140 participating countries and assesses what the Italian city has to show for its seven-year struggle; Oliver Wainwright.

Isenção de IMI nos Centros Históricos Classificados Património Mundial



Razões de uma isenção

O Estado Português concede, nos termos do artigo 44.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, uma isenção fiscal do IMI aos imóveis classificados como Monumento Nacional. Enquadram-se nessa classificação os bens imóveis reconhecidos pela UNESCO como Património Mundial, como são alguns centros históricos do nosso país.

Esta distinção faz incidir sobre estes conjuntos edificados um enquadramento legal muito particular, com regulamentos mais restritivos e um maior escrutínio nos processos de licenciamento de operações de construção, com consulta a entidades como o IGESPAR e imposições especiais quanto ao tipo de técnicas e materiais a utilizar. Tais imposições podem ir desde exigências simples como o tipo de telha, os materiais das caixilharias de janelas e portas, o tipo de revestimentos e pinturas, a restrições à abertura de vãos, à alteração da compartimentação ou à modificação das fachadas dos edifícios.

Adicionalmente, quaisquer intervenções que incidam sobre o solo, como a abertura de troços para ligação de infraestruturas, carecem de acompanhamento de um arqueólogo, tarefa cuja despesa pende sobre o proprietário ou promotor.
Também as taxas de ocupação de via pública são, em geral, mais elevadas nos centros históricos, incidindo para efeitos de espaço de estaleiro (para arrumo de materiais ou depósito de resíduos de construção) ou montagem de andaimes.

Até mesmo a vida corrente num centro histórico pode trazer custos específicos, como por exemplo o pagamento de licenças para direito a estacionamento de viaturas – sem que haja garantia de que as áreas reservadas para residentes não estejam indevidamente ocupadas por outros condutores.
E temos até que o Estado pode exercer direito de opção de compra nas transacções imobiliárias nestas zonas consideradas de interesse nacional.

São assim muitos os factores diferenciadores que incidem sobre aqueles que vivem e investem nestes centros antigos, sabendo-se que os encargos de conservação e recuperação são muito mais elevados do que aqueles a que estão sujeitos os proprietários em zonas novas ou com menor vetustez.

Falamos afinal de conjuntos edificados que vivem, em geral, processos de desertificação continuada, que os inquéritos e censos demonstram serem maioritariamente ocupados por populações envelhecidas e de poucos recursos financeiros. O resultado deste processo de declínio está à vista nas muitas casas abandonadas, quando não mesmo devolutas.
É perante este cenário que a isenção fiscal do IMI tem permanecido como único incentivo perene e com efeito nos centros históricos classificados. Trata-se assim, por todas estas razões, de uma medida de estímulo e incentivo ao investimento e à fixação de pessoas que importa compreender e acima de tudo defender.

Quando o Estado não cumpre a Lei

Lamentavelmente, este benefício fiscal que está plasmado na Lei tem sido atacado pela Autoridade Tributária (AT) que passou, de há alguns anos a esta parte, a não aplicar esta mesma isenção. Desrespeitando os termos do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), a AT tomou a liberdade de produzir e adoptar uma “interpretação” da legislação para justificar a sua não aplicação: em Évora a partir de 2009 e, gradualmente, estendendo esta ilegalidade ao Porto, a Sintra, a Guimarães, até aos dias de hoje.



Autarquias e movimentos de cidadãos dirigiram-se à Assembleia da República que se pronunciou por duas vezes, em 2010 e 2012, em reconhecimento da isenção. As recomendações da Comissão Parlamentar específica foram ignoradas pelo governo e a AT manteve a sua postura de ilegalidade.

Chegados a 2016 existem já deliberações dos Tribunais condenando a AT à devolução do imposto cobrado ilegalmente e ao pagamento de juros indemnizatórios aos cidadãos que interpuseram acções judiciais contra o Estado. Existem pareceres de entidades reputadas como o ICOMOS, a prestigiada organização consultiva não governamental da UNESCO para as questões da classificação do património, reforçando o entendimento da legalidade da isenção do IMI nos Centros Históricos Património da Humanidade. E até o Secretário de Estado das Autarquias Locais, membro do actual governo, emitiu um parecer jurídico declarando esse mesmo reconhecimento.

E ainda assim, pesem todas estas diligências, a AT continua a ignorar todas as recomendações e deliberações, de entidades credenciadas, do Parlamento e dos Tribunais, continuando a cobrar ilegalmente o IMI nestes mesmos centros históricos.
Triste é um país onde os cidadãos têm de levar as Finanças a Tribunal até às últimas instâncias, em processos que podem levar até uma década, para terem acesso um direito que lhes é concedido pela Lei. É algo que tem um nome, mas a que dificilmente poderemos chamar de Estado de Direito.

Referências:
1. "Isenção de IMI nos prédios sitos nos Centros Históricos Classificados como Monumento Nacional / Património da Humanidade", Resumo Jurídico do Movimento de Defesa do Centro Histórico de Évora;
2. Projecto de Resolução n.º 425/XII/1.ª – “Recomenda ao Governo a adoção das medidas necessárias ao reconhecimento da isenção de Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) aos prédios sitos no Centro Histórico de Évora”;
3. Parecer do Gabinete do Secretário de Estado das Autarquias Locais, Ofício n.º 28/GAP, de 11 de Março de 2016 – “Isenção de IMI – Centros Históricos Classificados pela UNESCO”, com despacho do Exmo. Sr. Secretário de Estado das Autarquias Locais Dr. Carlos Miguel, em resposta ao Presidente da Câmara Municipal de Guimarães;
4. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul; Processo n.º 08133/14, de 5 de Novembro de 2015;
5. Sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto; Processo n.º 1417/13.6BEPRT, de 1 de Junho de 2016;
6. Parecer “Isenção do Imposto Municipal sobre Imóveis e do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis incidente sobre os imóveis classificados”, de 16 de Junho de 2016, ICOMOS Portugal.


Voltarei a este tema para abordar o contorno jurídico da questão bem como o significado político do impasse que se vive neste momento. Deixo por agora a ligação para a página do Movimento de Defesa do Centro Histórico de Évora, uma iniciativa de cidadãos que tem partilhado um conjunto muito extenso de documentação, acessível na íntegra aqui.

Tacteando o caminho

Este texto foi originalmente publicado no blogue A Barriga de um Arquitecto no dia 10 de Fevereiro de 2005. Partilho agora numa versão ligeiramente revista, com fotografias da minha viagem à Índia e ao Nepal tiradas com uma velha “Praktica”, acompanhado pelo meu irmão mais velho, no Verão de 1992.



É necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não saímos de nós.

— José Saramago.



Em geometria descritiva usa-se a palavra charneira para descrever o eixo de rotação de um plano. A charneira é a linha de viragem de uma projecção ou, em sentido figurado, o momento em que a realidade se transforma.

Quando, em 1992, eu e o meu irmão planeámos viajar para o Nepal, vimo-nos compelidos pelo incrível apoio dos pais cuja motivação roçava a inconsciência. Nesses dias conversei com a minha prima Margarida que já lá tinha estado e nos havia inicialmente proposto a ideia da aventura. Ela contou-me como tudo aquilo era fantástico e diferente, o que tinha visto e o que devíamos fazer. No final da conversa teceu umas palavras sobre como, quando regressou, tudo lhe parecia estranho. O regresso tinha sido deprimente, tudo lhe parecia distante como se nada retivesse a mesma importância.

Não pude compreender aquilo e rapidamente o esqueci na densidade da viagem. A chegada a Nova Delhi de noite sem reservas, o ambiente sufocante, uma viagem de comboio rumo a norte até ao fim da linha, um autocarro pela monção e a passagem na fronteira fora de horas. O Nepal foi como devia ter estado à espera, estranho e fascinante como só podia ser aos olhos límpidos e inexperientes de dois jovens ocidentais.











A aventura, há muito arquivada em volumes de fotografias entretanto guardados numa pasta poeirenta, foi um tempo de charneira nas nossas vidas. Não o podíamos ver mas pudemos comparar nos nossos retratos, o antes e o depois. A experiência ficou vincada nos traços da cara como minúsculas marcas que escorreram junto do olhar e nas barbas por fazer que entretanto nos iam crescendo. E quando regressámos recordei as palavras da Margarida, pois também a mim tudo pareceu distante nesse regresso a Portugal. Não era o país que me desagradava, antes esta existência sem parâmetro de comparação que nos submerge num monte de futilidades diárias.

Esse tipo de sensação vamos perdendo com o passar dos dias, à medida que a lucidez se vai esbatendo na rotina do tempo. O que fica no fim é como um sonho quase esquecido mas que nos diz no fundo da mente que algo não está certo, como um pequeno alerta no prisma distorcido das percepções quotidianas.

A realidade é que o mundo é um lugar ambíguo onde é difícil cultivar grandes certezas. Ao pôr o pé fora da Europa pela primeira vez compreendemos que não era o mundo que estava lá fora mas antes nós que sempre vivêramos num estranho aquário, ignorantes da nossa própria condição.

No Nepal, com a lucidez da distância de milhares de quilómetros, descobri pela primeira vez o que significa ser Português. De volta a Portugal, foi difícil não acabar por esquecê-lo. Nestes dias em que vamos tacteando o caminho, sem conseguir ver o que espreita para lá do horizonte, tenho procurado recordar aqueles longos dias de viagem num país longínquo onde a memória do canto das gaivotas junto ao mar ao pôr do sol me fazia perceber aquilo de que eu era feito. E olho agora à minha volta, para um país de gente esquecida, ignorantemente insatisfeita com a sua falta de generosidade, de maturidade.

Entretanto, dia a dia, vamos perdendo o tempo que passa, à espera de uma charneira nas nossas vidas.


Vista da região do Annapurna, Nepal, 1992.

Porreiro, pá!


Image credits: Oliver Jeffers.

Dez notas sobre o Brexit e o momento histórico que estamos a viver.

1. Todo o debate está dominado por um enviesamento impregnado na própria linguagem. O mais expressivo está na utilização da expressão União Europeia (quando não mesmo a própria palavra “Europa”) como sinónimo de unidade europeia. Esquece-se que a União Europeia não é uma construção mitológica assente nas boas palavras que encimam o preâmbulo dos tratados mas, como escreve hoje Steeve Keen, uma instituição real que se transformou numa força de desunião dos países Europeus, uma entidade política disfuncional anti-democrática cujas regras e procedimentos estão a causar o declínio na Europa e a alimentar as forças racistas e separatistas que a estão agora a desagregar.

2. A campanha do referendo britânico foi um exercício vergonhoso de xenofobia, por um lado, e medo, por outro. Mas querer representar o voto no Brexit como um voto unidireccional conduzido por idiotas racistas, esquecendo a complexidade social e política de cada uma das escolhas em presença, é um exercício de um simplismo abjecto e inaceitável.

3. Na ressaca dos resultados, a mídia aí está a representar os eleitores britânicos do Brexit como idiotas, ignorando que a extraordinária participação do referendo traduz um largo espectro de eleitorado com sensibilidades políticas muito divergentes.

4. A campanha da mídia britânica para culpar Jeremy Corbyn dos resultados também já está em marcha. Se Corbyn era um incómodo antes do referendo, a possibilidade de se tornar primeiro-ministro inglês em caso de viragem política tornou-se uma ameaça real para o “establishment”. É preciso matá-lo politicamente tão cedo quanto possível.

5. Algumas vozes erguem-se agora esperando da União Europeia o início de um processo de reflexão e reforma que retome “o primado dos valores fundacionais”. É bom ter esperança. Mas também é bom lembrar que da UE não vieram quaisquer sinais de abertura a um processo desse tipo. Pelo contrário, podemos vir a assistir a exactamente o contrário; ao reforço da matriz austeritária e à tentativa de concentração de poder da União sobre a autonomia política e económica dos Estados Membros. O estertor até ao fim.

6. A instabilidade imediata lançada sobre o Reino Unido é um risco real, especialmente grave para os cidadãos mais vulneráveis, entre os quais os estrangeiros que lá trabalham como os muitos emigrantes portugueses. Mas a compreensão da gravidade desse processo não pode ser medida pela volatilidade inicial dos mercados cambiais e bolsistas. Em si mesmo, o que se vai passar nestes primeiros dias não tem verdadeira importância – a forma como a situação económica se vai reequilibrar, essa sim.

7. Na necessidade de estancar um processo de desagregação e saída de outras nações da União a UE poderá ter uma reacção inicial hostil, uma tentativa de castigar o Reino Unido como exemplo perante outros países. Mas a UE terá de vergar-se, também por influência dos Estados Unidos, consagrando à Grã-Bretanha um estatuto especial em termos similares aos que estão estabelecidos com a Suiça ou a Noruega. A situação acabará por estabilizar-se e os medos que a mídia está a lançar – como as dificuldades dos cidadãos ingleses em trabalharem nos países da União ou vice-versa – acabarão por se resolver com completa normalidade.

8. O voto de revolta, mesmo o voto xenófobo e racista, não é em si mesmo uma causa mas uma consequência da crise mais alargada que se vive hoje na Europa.

9. Acima de tudo, o voto do referendo britânico é um voto de revolta contra o “statu quo” – europeu e britânico. Os ingleses votaram na saída da União Europeia porque podem. Ponto. Muitos outros cidadãos desta Europa, como os Portugueses, os Gregos e os Espanhóis, gostariam de estar fora deste clube – dirigido por figuras cada vez mais sinistras como Wolfgang Schäuble, Jean Claude-Juncker, Donald Tusk, Jeroen Dijsselbloem e outros. Mas um referendo similar em qualquer um destes países teria sempre como resultado a manutenção – pela sua evidente fragilidade perante a força do “establishment” Europeu. A campanha do medo venceria sempre. Mas mesmo isso é verdade só até certo ponto. O medo só sustentará esta União Europeia à força até que o desespero imponha a alternativa. O que poderá acontecer na Itália ou na França, gerando, neste último caso, um terramoto político e económico difícil de imaginar.

10. O fim da União Europeia não começou ontem. A UE tornou-se numa instituição que está activamente a promover a desconstrução do tecido dos estados sociais que lhe trouxeram a paz desde o fim da segunda guerra mundial – e que está hoje a danificar e a destruir a economia de muitas das suas nações. Aquilo que estamos hoje a viver resulta do facto da União Europeia se ter tornado num projecto, não de esperança, mas de desesperança. Um projecto em que ninguém acredita e que só sobreviverá se o sistema político for capaz de levar a cabo a sua refundação. Se o processo de transformação inevitável a que vamos assistir for conduzido pela mão dos populismos da extrema direita, do Ukip à Frente Nacional, o destino será um desastre histórico de consequências trágicas para todos.

É obrigação de todos nós, cidadãos deste tempo, evitá-lo.

A propósito de um projecto comunitário +


Image credits: Fernando Guerra.

Pedro Rolo Duarte conversa com o arquitecto Tiago Mota Saraiva, a propósito de um projeto comunitário
Participação de Tiago Mota Saraiva no programa de rádio Mais novos do que nunca de Pedro Rolo Duarte. O diálogo tem como tema central o projecto da Cozinha Comunitária das Terras da Costa, construída no bairro com o mesmo nome na Costa da Caparica, resultado da colaboração do Ateliermob com o Colectivo Warehouse. A obra mereceu o prémio Edifício do Ano de 2016 da ArchDaily na categoria de arquitectura pública. Um artigo interessante da Quartz dá a conhecer o processo difícil mas empolgante que esteve por detrás de todo o projecto; ler Shantytown residents in Portugal commissioned this ethical kitchen from Lisbon architects.

The Architecture of Displacement
A “arquitectura do desalojamento” é o mote para uma exposição do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque dedicada ao tema da crise dos refugiados. A deslocação de milhões de pessoas através do Médio Oriente, Norte de África e Europa deu lugar ao aparecimento de comunidades permanentes de refugiados na França, na Grécia e em outros países. Campos como a “Selva” de Calais constituem-se como um novo tipo de arquitectura de crise – um lugar onde vivem cerca de seis mil pessoas, contando-se mais de 500 crianças, a maior parte das quais sem qualquer acompanhamento parental.

Wolfgang Münchau: Draghi, Schäuble e o elevado custo da cultura alemã da poupança
Artigo de Wolfgang Münchau sobre o problema criado pela política excedentária da Alemanha em tempo de crise económica generalizada na Europa. Na ausência de uma economia forte que produza a redistribuição dos excedentes para os países deficitários – como faziam os Estados Unidos ao abrigo do sistema Bretton Woods (de que muito beneficiou a Alemanha) – parece carecer à Europa um sistema de reequilíbrio económico que assegure a sua estabilidade de longo prazo. No contexto da moeda única, esse reequilíbrio foi meramente aparente e suportado pelo crédito, assente na transferência de reservas dos países mais ricos para os mais pobres, crescentemente endividados, mas onde os juros eram mais favoráveis. A insustentabilidade desse sistema ficou evidente a partir da crise de 2008. No entanto, oito anos depois, a Europa continua a adiar uma política de investimento alavancada necessariamente pelas economias mais fortes – como a Alemanha. Como refere Münchau, talvez esteja em causa “uma visão economicamente analfabeta” conduzida por economistas convencionais – como Wolfgang Schäuble – incapazes de lidar com as actuais circunstâncias de profunda anormalidade, marcadas pela ausência de investimento, mesmo num cenário de juros negativos. [Não olhem agora mas é exactamente o que Varoufakis anda a dizer há algum tempo; mas como o grego é considerado herético para muitos, talvez o texto de um alemão que escreve para o Financial Times seja mais convincente.]

Yanis Varoufakis: Imagining a New Bretton Woods
Yanis Varoufakis expõe a sua visão para um novo modelo monetário capaz de reintroduzir a lógica visionária do sistema Bretton Woods, estabelecido no fim da Segunda Guerra Mundial, num tempo em que estavam ainda bem presentes os ensinamentos da Grande Depressão de 1929. A sua proposta segue o modelo avançado por John Maynard Keynes tendo por base uma moeda de referência mundial, o “bancor”, modelo que seria então rejeitado pelos Estados Unidos, a favor da referenciação fixa do dólar ao ouro.

Yanis Varoufakis: The Future of Capitalism
Varoufakis tem-se desdobrado em aparições públicas e as suas conferências têm sido publicadas regularmente no YouTube. A mais “sensacional” será a que contou com a presença de Noam Chomsky em Nova Iorque, no passado dia 26 de Abril – mais indicada para aqueles que não conhecem tão bem o seu pensamento, uma vez que não trará nada de novo aos que seguem as suas palestras há mais tempo. Esta conferência que teve lugar na The New School for Social Research, com cerca de duas horas, é bem mais aprofundada, destacando-se não só a sua participação mas também a exposição de uma estudante norueguesa de economia, Ebba Boye, que oferece uma perspectiva muito interessante sobre o processo Europeu, visto do exterior.
Como complemento, vale a pena ver também a sua participação numa recente edição do Talks at Google, cuja exposição teve por base o livro And the Weak Suffer What They Must?.

Ricardo Paes Mamede: A falácia da relação entre salários, competitividade e crescimento económico
Artigo muito interessante de Ricardo Paes Mamede desconstruindo os perigos de prosseguir um pensamento simplista quando estão em causa matérias de natureza económica, focando-se neste caso na relação complexa entre salário e competitividade.

Ian Welsh: How the Rational Irrationality of Capitalism Is Destroying the World
Não sei como descobri o blogue deste canadiano, liberal de esquerda na matriz americana, mas está a tornar-se rapidamente um dos meus favoritos, de leitura obrigatória. Este texto recente oferece uma das mais curiosas análises críticas do capitalismo que me lembro de ler, tendo por base uma reflexão sobre o conflito entre dois tipos de racionalidade: a coerência interna e a relação entre meios e fins. Como exemplo, o papel da “obsolescência programada” enquanto estratégia de optimização do consumo e do rendimento, lógica numa perspectiva de racionalidade sistémica, e os seus efeitos mais vastos quando analisadas as suas consequências ao nível do aproveitamento e exploração dos recursos naturais, da poluição e da produção de resíduos.

Steve Keen: Zombies-To-Be and the Walking Dead of Debt
Só para os mais resistentes, uma aula de Steve Keen, professor de economia na Kingston University em Londres, sobre o crescimento rápido do crédito enquanto factor gerador de crises. A parte mais teórica, a partir do minuto 4:30 é um pouco pesada, mas não devem perder a reflexão a partir dos 11 minutos sobre “a pistola fumegante do crédito”, fazendo a previsão assustadora da próxima vaga de uma crise que ainda não acabou.

Lá em cima



Diz-nos a NASA que Mercúrio passa entre a Terra e o Sol cerca de treze vezes em cada século, num raro evento astronómico a que chamamos de Trânsito de Mercúrio. Esse fenómeno ocorreu ontem, 9 de Maio, e este vídeo apresenta uma composição de imagens recolhidas pelo Solar Dynamics Observatory (SDO) através de vários instrumentos de captura de luz e radiação electromagnética. Via Kottke

Querem que vos faça um desenho?

O texto anterior dedicado a analisar as distorções do gráfico da evolução da dívida pública portuguesa apresentado numa peça jornalística da RTP motivou algumas observações curiosas através do Facebook. Para melhor explicar o efeito daquelas distorções partilho convosco três imagens.





Na primeira temos o gráfico apresentado pela RTP. Repare-se a deformação do período temporal entre 2005 e 2011, no eixo horizontal, bem como a desproporção no eixo vertical entre o intervalo de zero a 100 mil milhões, e o intervalo de 100 a 200 mil milhões de Euros. Na segunda temos o gráfico com os mesmos dados, sem distorções, e na terceira podemos ver a sobreposição das duas imagens anteriores.

A ampliação do eixo temporal entre 2005 e 2011 tem o efeito de "suavizar" a ascenção da linha do gráfico, o que parece ser favorável ao período de governação coincidente, do ex-primeiro-ministro José Sócrates.

No entanto, quando atentamos na ampliação parcial do eixo de valor para o dobro no intervalo entre 100 e 200 mil milhões de Euros, verificamos que o traçado da evolução da dívida pública a partir de 2005 está também ao dobro da escala gráfica do período anterior. E aqui importa observar que o dobro da escala gráfica significa o quádruplo da área representada de dívida.

Temos assim que aquela “montanha” de dívida que aparece representada no primeiro gráfico a partir de 2005 é resultado da deformação de escalas. Dito de outro modo, no gráfico da RTP estávamos, em 2005, no sopé da “montanha”, enquanto no gráfico corrigido estávamos, nesse mesmo ano, a meio do valor atingido em 2011 e já a 2/5 da altura da dívida actual.

É difícil encontrar um exemplo tão incoerente de representação de dados quantificativos, tendo por base um gráfico com distorções de escala nos seus eixos. Fazendo um esforço de assertividade talvez possamos supor a ignorância matemática do autor da imagem e dos jornalistas do Telejornal que foram incapazes de identificar os erros nela contidos. Certo é que a peça apresentada favorece uma leitura enviesada dos factos, deixando irremediavelmente comprometida a validade técnica de todo aquele exercício.

Adenda: deixo a ligação para um artigo interessante da National Geographic sobre formas correctas e incorrectas de representar dados através de gráficos; ler A Quick Guide to Spotting Graphics That Lie.

Isto não é jornalismo: o que há de errado com esta imagem?



Uma peça jornalística da RTP dedicada a analisar a evolução da dívida pública portuguesa ofereceu ao telespectador momentos de humor involuntário. Para lá do histrionismo do apresentador José Rodrigues dos Santos, estavam em causa erros grosseiros na representação dos dados do gráfico que lhe servia de suporte. É caso para dizer: o que há de errado com esta imagem?

A falha mais flagrante tinha por base a estranha dilatação espácio-temporal do período compreendido entre os anos de 2005 e 2011 – um intervalo de seis anos com o dobro do comprimento do intervalo de cinco anos entre 2000 e 2005. Esse, no entanto, era apenas um dos erros daquele gráfico.



Aqui podemos ver a imagem da evolução da dívida pública apresentada no Telejornal, a que adicionei linhas de referência indicando o patamar dos 100 e dos 200 mil milhões de euros – note-se também que o referencial “zero” se encontra abaixo da linha preta do gráfico da RTP.
Mais importante, no entanto, é notar que, para além da já referida distorção do eixo horizontal, também o eixo vertical apresenta uma incompreensível desproporção da escala de valores – distorção essa que, ao contrário da primeira, se afigura dificilmente justificável como uma mera falha na edição dos dados.

Constata-se afinal que o intervalo entre 0 e 100 mil milhões de euros é muito mais pequeno do que o intervalo entre 100 e 200 mil milhões de euros – e isto sem ajustar sequer a perspectiva dessas linhas de referência ao formato do quadro virtual apresentado. Se o fizéssemos, o agravamento de escala seria ainda maior. Temos assim que a linha traçada pela imagem é uma aberrante distorção da realidade, com incoerências na representação do tempo e uma clara manipulação na representação da escala de valor.

Estamos perante uma peça sem qualquer validade académico-científica e um insulto á inteligência dos espectadores, a que acresce uma questionável exposição dos factos por parte de José Rodrigues dos Santos. Apontando para o ano de 2011, o apresentador refere que para agravar as coisas, o Eurostat descobriu que alguns países, incluindo Portugal, estavam a esconder a dívida em empresas públicas, dívida que não era incluída nas contas nacionais; ou seja, endividávamo-nos, mas escondíamos a dívida. Prossegue então para sustentar que foi a alteração do modelo de cálculo do perímetro orçamental por parte de Bruxelas que justificou o aumento subsequente da dívida, fazendo atingir valores da ordem dos 233 mil milhões de euros em 2016.

Sucede que o Eurostat não descobriu nada que não se soubesse há muito. O gabinete de estatísticas da União Europeia simplesmente começou a alterar as suas regras a partir de 2009 pressionado pela crise na Grécia e o alarme provocado pela elevada exposição da banca alemã e francesa aos títulos de dívida daquele país – pondo fim à permissividade com o endividamento que até então havia vigorado, com o beneplácito da Comissão Europeia e o incentivo financeiro directo da UE.

De resto, se esse processo justifica o acentuar dos valores da dívida portuguesa verificado até à chegada da troika a Portugal, não explica certamente porque é que aqueles valores continuaram a subir em tempo de austeridade até ao presente.


Adaptação do cartoon original de Zach Weiner, via SMBC Comics.

Mais do que tudo isto, importa referir a inutilidade de todo este exercício. O que lemos nós afinal naquela linha que representa a evolução da dívida pública portuguesa desde o ano 2000? Se existem valores que foram sendo introduzidos, a partir de 2009, por via do alargamento do perímetro orçamental por parte do Eurostat, isso significa também que a única forma de observar com seriedade a evolução da dívida seria discriminar esses valores introduzidos e detalhar também a sua evolução ao longo dos anos, em todo aquele período.
Só assim seria possível observar o modo como aquelas dívidas foram sendo criadas e a sua evolução ao longo do tempo.

Disse um dia Stephen Hawking que o maior inimigo do conhecimento não é a ignorância, mas a ilusão do conhecimento. Eis um flagrante exemplo de como a televisão e o "jornalismo" podem servir para promover essa perversa corrosão do saber.

Adenda: a imagem abaixo, editada, tenta corrigir os erros de distorção do gráfico da RTP.


Sobre este tema ler também: Isto não é jornalismo.

Inside a Creative Mind: Gonçalo Byrne e ARX Portugal



Já estão disponíveis para ver na internet as conferências de Gonçalo Byrne e de José e Nuno Mateus (ARX Portugal), promovidas no âmbito do ciclo Inside a Creative Mind da Fundação Calouste Gulbenkian. Os interessados podem também ver o registo da sessão de abertura que contou com a participação de Álvaro Siza Vieira.

As próximas sessões contam com as presenças de Francisco e Manuel Aires Mateus (28 de Abril), João Luís Carrilho da Graça (12 de Maio), Inês Lobo (19 de Maio) e Eduardo Souto de Moura (2 de Junho), tendo lugar no Auditório 2 da Fundação, sempre às 18h30. A exposição estará patente até ao dia 6 de Junho (encerra às terças-feiras).

Cinegirasol: Os Azeitonas + Nuno Markl







É uma era de multiplexes, streaming, DVD e Blu-ray. Viajando de terra em terra, António Feliciano, o homem do Cinegirasol, tenta manter viva a magia do cinema ambulante, projectando épicas aventuras e arrebatadores romances num lençol esticado nas praças centrais das vilas...

Chama-se Cinegirasol e é o mais recente lançamento da banda portuense Os Azeitonas. O videoclipe tem argumento de Nuno Markl, com realização e animação de Bruno Caetano e Rui Telmo Romão, secundados por toda a equipa do Col.A – Colectivo de Animação.

N’A Cave do Markl o humorista conta a história verídica por detrás da música. As desventuras de um senhor chamado António Feliciano, apaixonado pela sétima arte, que vai na sua carrinha percorrendo de aldeia em aldeia, levando consigo o seu cinema ambulante. Eis o Cinegirasol que ilumina praças e leva magia às noites de Verão, em especial nas zonas de Odemira e Vila Nova de Milfontes.

A juntar-se ao registo fotográfico de todo o trabalho que esteve por detrás da construção do teledisco, que Nuno Markl partilha no seu blogue, vale também a pena ver o Making of disponibilizado pelo grupo de autores deste belo projecto de animação. Fica o vídeo, a não perder, para ver depois do salto.

Está um senhor esquisito a sair de uma banheira na TV



Sometimes it snows in April.
Sometimes I feel so bad, so bad.
Sometimes I wish that life was never ending,
But all good things, they say, never last...
And love, it isn't love until it's past.

— Prince, Sometimes It Snows In April (1986).

A primeira vez que vi Prince foi em 1984. Para um pré-adolescente branco dos subúrbios, fã dos Wham!, a imagem de um afro-americano despido, de postura meio andrógina, a sair de uma banheira na televisão era, francamente, demais. A minha imaturidade musical estava longe de poder abarcar o estranho experimentalismo de When Doves Cry e, de resto, o meu inusitado conservadorismo juvenil tornava-me incapaz de aceitar a estética ainda mais transgressora do seu videclipe.

Foram precisos vários anos para que fosse capaz de descobrir a grandeza de Prince Rogers Nelson. Já adolescência adentro, Purple Rain fazia-me compreender que a cultura popular também podia almejar à grandeza da mais erudita das artes – pois que ali se conjugava toda a pujança sinfónica da Pop rock, voando alto ao som de um dos mais orquestrais solos de guitarra eléctrica da história da música.

Foi, a par com David Bowie, um daqueles artistas que nos fez ver que podemos ser e viver desalinhados de todas as convenções. De Minneapolis para o mundo, reclamou o perigo como elemento fundamental da criação musical, desafiando o conservadorismo e o preconceito, na música como na vida. Uma verdadeira Estrela do Rock, compositor genial, autor prolífero, guitarrista brutal, orgulhoso portador da sua herança racial, um maravilhoso weirdo que nunca aderiu a conformidades de género ou sucumbiu a concessões de linguagem.

Hoje a chuva é púrpura e até as pombas choram. Mas a vida é apenas uma festa, e as festas não foram feitas para durar…

Dejected lovers

Zaha Hadid é de facto uma “mulher do seu tempo”, como alguém dizia, e na sua obra podemos ler as marcas e, sobretudo, as ilusões que animaram esse tempo que hoje tanto pesa sobre nós.

— Pedro Levi Bismarck, Duas ou três coisas que se podem dizer sobre ela (Zaha Hadid).

A reflexão (curta mas difícil) que partilhei no dia da morte de Zaha Hadid tomava como ponto de partida a influência que o seu trabalho teve na formação dos arquitectos da nossa geração. O ensaio do Lebbeus Woods, escrito em 2008, servia de janela para aquele mundo aberto pelos seus desenhos, em particular no período entre as décadas de oitenta e noventa.

A referência a Lebbeus Woods não era inocente. Ele, como poucos, foi capaz de apreciar as qualidades indiscutíveis da Zaha Hadid sem abdicar de ter sobre o seu percurso um olhar crítico. Aquele mesmo texto (Protoarchitecture: Analogue and Digital Hybrids) terminava exprimindo perplexidade e angústia sobre o trajecto entre uma estética fragmentária, pluralista e democrática, e uma arquitectura de grandes gestos, elegante, eficaz, mas também inerentemente autocrática.

Fragmentation is inherently democratic, regardless of how dominated at any moment by one style or another—that, after all, remains a measure of choice. Big gestures, however elegant or effective they may be, are inherently autocratic. Here we stand at the precipitous divide between art and politics, which is exactly the domain of architecture in any age. It is the edge on which the drawings and projects of Zaha Hadid are, at this moment, delicately poised.

— Lebbeus Woods, Zaha Hadid’s Drawings 3 (Protoarchitecture: Analogue and Digital Hybrids).

Lebbeus Woods viria a abordar a obra de Zaha Hadid diversas vezes, acentuando esse olhar crítico e crescentemente divergente – sem nunca pôr em causa a enorme admiração que tinha por ela. Em Zaha’s Way, escrito em 2011, refere explicitamente o perigo do abandono daquela arquitectura por um compromisso com a era da incerteza da condição humana vivida no presente.

Aware of the history of the past hundred years and the turbulent character of the present, such an attitude can only seem arrogant and self-indulgent. This appraisal is not simply about images, but about buildings, even masterpieces of architecture regarded as an extension of an architectural history of masterpieces, that are utterly oblivious to the uncertain and conflicted human condition of today, which is unprecedented in history.

— Lebbeus Woods, Zaha’s Way.

Um ano depois Woods voltava a criticar o trabalho de Zaha Hadid, dedicando-lhe “uma espécie de carta de amor”: «Don’t you love me anymore?»

I feel abandoned and bereft because one the most gifted architects of my time has been reduced to wrapping such conventional programs of use in merely expressionistic forms, without letting a single ray of her genius illuminate the human condition. Am I being pretentious and overly demanding? Of course. But that’s the way disappointed lovers behave. Exaggerated emotions. Absurd demands. Anger that transgresses all reason. She has let me down, and what makes it worse is that she apparently couldn’t care less.

— Lebbeus Woods, Zaha’s Aquatic Center.

O texto do Pedro Bismarck é muito interessante e mergulha exactamente nessa perplexidade histórica, com que hoje tanto nos confrontamos, e que eu partilho em absoluto – uma perplexidade que está no cerne do conflito que marca a nossa disciplina neste início de século e a que procurei fazer referência numa reflexão anterior – ler The great architectural divide. Tratava-se de questionar o modo como o “parametricismo”, entranhado numa retórica “liberal de mercado”, parece correr o risco de se tornar rapidamente uma arquitectura do passado, mesmo nas suas manifestações vindouras.

Certo é que, independentemente da divergência que possamos ter com as obras de Zaha Hadid, ela foi indiscutivelmente “uma mulher do nosso tempo” e é, no que à arquitectura diz respeito, a mulher do nosso tempo. Não será possível fazer a história crítica da arquitectura deste período histórico sem que Zaha Hadid ocupe, para o bem e para o mal, nas suas qualidades e nas perplexidades que nos invoca, um lugar central.

Mas talvez Lebbeus Woods o tenha identificado com vários anos de avanço. É que, perante o percurso (irremediavelmente inacabado) da obra de Zaha Hadid, quedamo-nos todos como “amantes entristecidos”.

What is urgently needed now is the very antithesis of utopian purity: masterpieces of imperfection.

— Lebbeus Woods, Zaha’s Way.


Image credits: Zaha Hadid, The World (89 degrees), 1983.

Lá em cima




Duas imagens que marcaram a semana científica que passou. Na primeira, uma vista do Cometa 67P/C-G captada no dia 27 de Março pela nave Rosetta, à distância de 329 quilómetros do seu núcleo, brilhando à contra-luz no alinhamento perfeito com o Sol. Na segunda imagem, o veículo da NASA Opportunity, cuja missão em Marte dura há mais de 4 mil dias, regista a formação de um remoinho de vento na superfície do planeta vermelho.

Zaha Hadid, uma mulher do nosso tempo



Um dos autores que melhor ajudou a descodificar Zaha Hadid foi por certo Lebbeus Woods. No ensaio Drawn Into Space, publicado no livro Protoarchitecture: Analogue and Digital Hybrids em 2008, deixou uma reflexão atenta e muito lúcida sobre a evolução do trabalho de Zaha, da década de setenta até à actualidade, tendo por base a expressão pouco convencional dos seus desenhos. O arquitecto americano, também ele um artista visionário, identificava a transição de um estilo fragmentado referenciado no suprematismo – em particular o neoplasticismo holandês e a avant-garde russa do início do século vinte – para a fluidez contemporânea, curvilínea e complexa, com que ganharia notoriedade à escala global.
O texto de Lebbeus Woods pode ser lido no blogue pessoal que nos deixou, aqui: ler Zaha Hadid’s Drawings – parte 1, parte 2 e parte 3.

Os desenhos de Zaha Hadid tornaram-se uma referência incontornável nas academias de arquitectura a partir de início da década de noventa. Num tempo em que perduravam ainda os formalismos literais e os historicismos da corrente pós-modernista, os estudos parcialmente abstractos que acompanhavam o projecto da Vitra Fire Station eram uma pedrada no charco. Os seus acrílicos e as suas aguarelas enunciavam não apenas novas formas mas novos modos de formular ideias de edificabilidade e de espaço. Como refere Lebbeus Woods, os seus desenhos foram então copiados por uma vasta legião de admiradores e revelaram-se profundamente influentes para uma nova cultura emergente de modelação computadorizada.
Será impossível fazer o balanço crítico da arquitectura das últimas décadas sem reflectir sobre o vasto e contraditório corpo de trabalho que nos deixa Zaha Hadid. Entre o experimentalismo fragmentário dos primeiros anos ao grande gesto artístico e irremediavalmente político, a sua obra confronta-nos com as perplexidades, as angústias, as esperanças do nosso tempo, e continuará a interpelar-nos no futuro.



Faleceu hoje, aos 65 anos de idade.

Inside a Creative Mind: Álvaro Siza Vieira



Está disponível na internet a conferência com Álvaro Siza Vieira que teve lugar no passado dia 18 de Março, realizada no âmbito do ciclo Inside a Creative Mind promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian. As próximas sessões contarão com a presença de Gonçalo Byrne, José e Nuno Mateus, Francisco e Manuel Aires Mateus, João Luís Carrilho da Graça, Inês Lobo e Eduardo Souto de Moura. O calendário da programação pode ser consultado aqui. Os mais interessados podem acompanhar a página Livestream da Fundação, onde são exibidos em directo e arquivados os vídeos deste e de outros eventos. A acompanhar o ciclo de conferências está ainda patente uma exposição com trabalhos seleccionados dos arquitectos, em exibição até ao dia 6 de Junho (encerra às terças-feiras).