Isto não é jornalismo: o que há de errado com esta imagem?



Uma peça jornalística da RTP dedicada a analisar a evolução da dívida pública portuguesa ofereceu ao telespectador momentos de humor involuntário. Para lá do histrionismo do apresentador José Rodrigues dos Santos, estavam em causa erros grosseiros na representação dos dados do gráfico que lhe servia de suporte. É caso para dizer: o que há de errado com esta imagem?

A falha mais flagrante tinha por base a estranha dilatação espácio-temporal do período compreendido entre os anos de 2005 e 2011 – um intervalo de seis anos com o dobro do comprimento do intervalo de cinco anos entre 2000 e 2005. Esse, no entanto, era apenas um dos erros daquele gráfico.



Aqui podemos ver a imagem da evolução da dívida pública apresentada no Telejornal, a que adicionei linhas de referência indicando o patamar dos 100 e dos 200 mil milhões de euros – note-se também que o referencial “zero” se encontra abaixo da linha preta do gráfico da RTP.
Mais importante, no entanto, é notar que, para além da já referida distorção do eixo horizontal, também o eixo vertical apresenta uma incompreensível desproporção da escala de valores – distorção essa que, ao contrário da primeira, se afigura dificilmente justificável como uma mera falha na edição dos dados.

Constata-se afinal que o intervalo entre 0 e 100 mil milhões de euros é muito mais pequeno do que o intervalo entre 100 e 200 mil milhões de euros – e isto sem ajustar sequer a perspectiva dessas linhas de referência ao formato do quadro virtual apresentado. Se o fizéssemos, o agravamento de escala seria ainda maior. Temos assim que a linha traçada pela imagem é uma aberrante distorção da realidade, com incoerências na representação do tempo e uma clara manipulação na representação da escala de valor.

Estamos perante uma peça sem qualquer validade académico-científica e um insulto á inteligência dos espectadores, a que acresce uma questionável exposição dos factos por parte de José Rodrigues dos Santos. Apontando para o ano de 2011, o apresentador refere que para agravar as coisas, o Eurostat descobriu que alguns países, incluindo Portugal, estavam a esconder a dívida em empresas públicas, dívida que não era incluída nas contas nacionais; ou seja, endividávamo-nos, mas escondíamos a dívida. Prossegue então para sustentar que foi a alteração do modelo de cálculo do perímetro orçamental por parte de Bruxelas que justificou o aumento subsequente da dívida, fazendo atingir valores da ordem dos 233 mil milhões de euros em 2016.

Sucede que o Eurostat não descobriu nada que não se soubesse há muito. O gabinete de estatísticas da União Europeia simplesmente começou a alterar as suas regras a partir de 2009 pressionado pela crise na Grécia e o alarme provocado pela elevada exposição da banca alemã e francesa aos títulos de dívida daquele país – pondo fim à permissividade com o endividamento que até então havia vigorado, com o beneplácito da Comissão Europeia e o incentivo financeiro directo da UE.

De resto, se esse processo justifica o acentuar dos valores da dívida portuguesa verificado até à chegada da troika a Portugal, não explica certamente porque é que aqueles valores continuaram a subir em tempo de austeridade até ao presente.


Adaptação do cartoon original de Zach Weiner, via SMBC Comics.

Mais do que tudo isto, importa referir a inutilidade de todo este exercício. O que lemos nós afinal naquela linha que representa a evolução da dívida pública portuguesa desde o ano 2000? Se existem valores que foram sendo introduzidos, a partir de 2009, por via do alargamento do perímetro orçamental por parte do Eurostat, isso significa também que a única forma de observar com seriedade a evolução da dívida seria discriminar esses valores introduzidos e detalhar também a sua evolução ao longo dos anos, em todo aquele período.
Só assim seria possível observar o modo como aquelas dívidas foram sendo criadas e a sua evolução ao longo do tempo.

Disse um dia Stephen Hawking que o maior inimigo do conhecimento não é a ignorância, mas a ilusão do conhecimento. Eis um flagrante exemplo de como a televisão e o "jornalismo" podem servir para promover essa perversa corrosão do saber.

Adenda: a imagem abaixo, editada, tenta corrigir os erros de distorção do gráfico da RTP.


Sobre este tema ler também: Isto não é jornalismo.

5 comentários:

  1. P.f. corrija "descriminar" para "discriminar". De resto, completamente de acordo.

    ResponderEliminar
  2. Irrelevante! O principal é perceber que independentemente dos ladrões que vão estando no governo e no sistema financeiro, a dívida cresce sempre com o mesmo ritmo...e é para manter.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Claro que é relevante. O gráfico foi usado levianamente como meio de informação.

      Eliminar
  3. Tema interessante. No caso os números falam por si e o grafico será irrelevante. Mas a manobra infantil de omitir a graduação do eixo vertical porque manipulado, justificou plenamente o bruaá.

    Contudo, a verdadeira manipulação está na omissão que o eixo horizontal esconde: pois o tema (crescimento da dívida) só se comprrende plenamente quando recuamos no tempo. A história do seculo XX português está contida num gráfico que apresente dados desde 1901 e a sua ausência é que é o grande escândalo da RTP ou de qualquer manual escolar

    ResponderEliminar