Tacteando o caminho

Este texto foi originalmente publicado no blogue A Barriga de um Arquitecto no dia 10 de Fevereiro de 2005. Partilho agora numa versão ligeiramente revista, com fotografias da minha viagem à Índia e ao Nepal tiradas com uma velha “Praktica”, acompanhado pelo meu irmão mais velho, no Verão de 1992.



É necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não saímos de nós.

— José Saramago.



Em geometria descritiva usa-se a palavra charneira para descrever o eixo de rotação de um plano. A charneira é a linha de viragem de uma projecção ou, em sentido figurado, o momento em que a realidade se transforma.

Quando, em 1992, eu e o meu irmão planeámos viajar para o Nepal, vimo-nos compelidos pelo incrível apoio dos pais cuja motivação roçava a inconsciência. Nesses dias conversei com a minha prima Margarida que já lá tinha estado e nos havia inicialmente proposto a ideia da aventura. Ela contou-me como tudo aquilo era fantástico e diferente, o que tinha visto e o que devíamos fazer. No final da conversa teceu umas palavras sobre como, quando regressou, tudo lhe parecia estranho. O regresso tinha sido deprimente, tudo lhe parecia distante como se nada retivesse a mesma importância.

Não pude compreender aquilo e rapidamente o esqueci na densidade da viagem. A chegada a Nova Delhi de noite sem reservas, o ambiente sufocante, uma viagem de comboio rumo a norte até ao fim da linha, um autocarro pela monção e a passagem na fronteira fora de horas. O Nepal foi como devia ter estado à espera, estranho e fascinante como só podia ser aos olhos límpidos e inexperientes de dois jovens ocidentais.











A aventura, há muito arquivada em volumes de fotografias entretanto guardados numa pasta poeirenta, foi um tempo de charneira nas nossas vidas. Não o podíamos ver mas pudemos comparar nos nossos retratos, o antes e o depois. A experiência ficou vincada nos traços da cara como minúsculas marcas que escorreram junto do olhar e nas barbas por fazer que entretanto nos iam crescendo. E quando regressámos recordei as palavras da Margarida, pois também a mim tudo pareceu distante nesse regresso a Portugal. Não era o país que me desagradava, antes esta existência sem parâmetro de comparação que nos submerge num monte de futilidades diárias.

Esse tipo de sensação vamos perdendo com o passar dos dias, à medida que a lucidez se vai esbatendo na rotina do tempo. O que fica no fim é como um sonho quase esquecido mas que nos diz no fundo da mente que algo não está certo, como um pequeno alerta no prisma distorcido das percepções quotidianas.

A realidade é que o mundo é um lugar ambíguo onde é difícil cultivar grandes certezas. Ao pôr o pé fora da Europa pela primeira vez compreendemos que não era o mundo que estava lá fora mas antes nós que sempre vivêramos num estranho aquário, ignorantes da nossa própria condição.

No Nepal, com a lucidez da distância de milhares de quilómetros, descobri pela primeira vez o que significa ser Português. De volta a Portugal, foi difícil não acabar por esquecê-lo. Nestes dias em que vamos tacteando o caminho, sem conseguir ver o que espreita para lá do horizonte, tenho procurado recordar aqueles longos dias de viagem num país longínquo onde a memória do canto das gaivotas junto ao mar ao pôr do sol me fazia perceber aquilo de que eu era feito. E olho agora à minha volta, para um país de gente esquecida, ignorantemente insatisfeita com a sua falta de generosidade, de maturidade.

Entretanto, dia a dia, vamos perdendo o tempo que passa, à espera de uma charneira nas nossas vidas.


Vista da região do Annapurna, Nepal, 1992.